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Raízes - Deana Barroqueiro


No início...

2018-12-31 10:16:57

Deus sentira-se de tal modo defraudado por a Sua criação mais auspiciosa – o Homem feito à Sua imagem e a Mulher feita segundo a imagem aperfeiçoada do Homem, para dominarem sobre todos os outros seres do Mundo – ter resultado tão defeituosa e rebelde que, depois de os fazer expulsar do jardim do Éden, apesar da insistência dos anjos, se mostrara inabalável na recusa de uma nova tentativa para criar a Humanidade.
Apesar da Sua omnisciência (talvez devido ao cansaço de ter feito aquele imenso Mundo em apenas seis dias), no instante da criação do Homem sentira-se muito orgulhoso da Sua obra, não lhe achando qualquer defeito ou mácula. Na euforia que se seguiu, não vendo entre todos os animais desse Mundo uma companheira adequada para oferecer à Sua criatura, caíra na tentação de dar vida a um novo ser, feito à imagem do anterior, aperfeiçoando o modelo com a introdução de pequenas mas significativas diferenças.
Como desejava um material mais raro do que o pó utilizado na primeira tentativa, adormeceu profundamente o Homem, nas margens do rio Tigre que limitava a Oriente o jardim do Éden, e tirou-lhe uma das costelas que substituiu por carne, esculpindo a partir do osso uma nova criatura em forma de Mulher.
Ao contemplar a Sua obra, o Criador achou-a tão bela que, em vez de lhe soprar a vida pelas narinas como fizera ao Homem, insuflou-lha através dos lábios beijando-a e, com surpresa, sentiu pela primeira vez o Seu espírito vibrar de emoção nesse fugaz contacto com a matéria.
Cheio de curiosidade, Deus espiou a reacção do Homem, quando ele despertou e olhou para a Mulher a seu lado. Para grande espanto do Criador, ao ver aquele novo ser que se lhe oferecia na sua esplêndida nudez, o Homem não se ergueu do lugar, nem Lhe agradeceu a dádiva, limitando-se a exclamar:
– Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne! Chamar-se-á Mulher, visto ter sido tirada do Homem!
Ouvindo estas frases, Deus admitiu pela primeira vez, no Seu íntimo, que talvez a Sua melhor criação não fosse afinal tão perfeita no espírito como era na carne e pensou se não seria um risco pôr a Árvore da Ciência do Bem e do Mal ao seu alcance. Porém como já era tarde, retirou-se para descansar ao sétimo dia e não voltou a pensar no assunto.
Um dia, aproveitando-se da Sua distracção, as duas obras-primas do Criador atraiçoaram-No e, quando Ele as confrontou com o crime da rebeldia e da desobediência, o Homem culpou a Mulher e a Mulher culpou a Serpente pela tentação de degustar o fruto proibido. Ferido no Seu orgulho e no Seu amor, vestiu-os com túnicas de peles e expulsou-os para sempre do Jardim das Delícias, antes que descobrissem o fruto da Árvore da Vida e vivessem eternamente. Apesar do seu arrependimento e das suas súplicas, lançou-lhes terríveis maldições:
– Tu, Mulher, por teres desejado ser mais inteligente do que o Homem e igual ao teu Deus, procurarás com paixão o teu marido, a quem serás sujeita. Aumentarei os sofrimentos da tua prenhez e parirás teus filhos com dor, suor e lágrimas. Chamar-te-ás Eva pois serás a mãe de todos os viventes.
A Mulher chorou o Paraíso perdido e a sua nova condição na terra. E Deus amaldiçoou o Homem:
– Tu, Homem, que provaste o fruto proibido da inteligência, procurarás o alimento, à custa de penoso trabalho, em todos os dias da tua vida e comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado: porque tu és pó e em pó te hás-de tornar! E todo o homem nascido da tua semente há-de ser tentado e enganado pela mulher, por toda a Eternidade, como tu foste pela tua.
Querubins armados de espadas flamejantes expulsaram-nos do Paraíso, pela porta do Oriente, para as terras desérticas da futura Babilónia, sita entre os rios Tigre e Eufrates que Adão, o primeiro homem, deveria tornar férteis pelo esforço do seu lavor e castigo.

Quando Deus acalmou a Sua ira e pôde pensar com serenidade nas duas criaturas caídas em desgraça, viu que dispunha apenas do casal primordial, Adão e Eva, para povoar o mundo e, como não queria voltar com a palavra atrás, criando novos seres, foi forçado a prolongar as suas vidas miseráveis assim como a dos seus descendentes, tornando-as férteis durante séculos para que a Humanidade pudesse crescer e multiplicar-se com algum sucesso.
Mesmo assim o processo era tão lento que os Filhos de Deus, contrariando os desígnios do Pai, decidiram sair da esfera celeste e contribuir para o acréscimo da Humanidade, escolhendo entre as mais belas filhas dos homens as que bem quiseram, fecundando-as. Dessa união nasceram os gigantes e os famosos heróis dos tempos remotos, paridos em grande dor pelas filhas dos homens, pois a maldição divina jamais fora levantada.
Tomando conhecimento da desobediência das forças celestes e da desordem cósmica que isso implicava, Deus arrependeu-Se mais uma vez de ter criado o Homem e a Mulher e, sofrendo amargamente, castigou de novo as Suas criaturas:
– Não quero que o meu espírito permaneça indefinidamente no homem, pois o homem é carne, por isso, os seus dias não ultrapassarão os cento e vinte anos.
Deus enviou o Dilúvio e destruiu as terras da Mesopotâmia e todos os seres vivos, permitindo que apenas Noé com a sua família – a nona geração de Adão – e um casal de todos os animais em vias de extinção se salvassem numa arca, abrindo assim o caminho para uma nova Humanidade, num processo quase idêntico ao anterior.
O Criador contava com a efemeridade da vida a que havia condenado os homens e com a sua lentidão em crescer e multiplicar-se, para tão cedo não ser importunado pelos seus erros e desacatos, nem ter de os vigiar, punir ou premiar pelos seus actos. Deixou então os homens entregues a si próprios e esqueceu-Se deles.
Todavia, contrariando os desígnios divinos, as forças celestes interessaram-se de novo pela Humanidade e, para acelerar o seu crescimento, concederam aos descendentes de Noé, tal como haviam feito aos de Adão, uma esperança de vida de mais de novecentos anos nos homens e uma juventude e fertilidade quase eternas nas mulheres, segundo consta nos registos do livro das gerações nascidas de Adão, de todos os Patriarcas, de antes e depois do Dilúvio, assim como no Livro do Génesis.

Deana Barroqueiro – in «Contos Eróticos do Velho Testamento», Editora Planeta

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