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Raízes - João de Melo


OS OSSOS DO MEU CORPO

2022-02-21 08:44:02

O segredo foi-me revelado, sem mistério algum, por uma voz pausada e sincera que veio anunciar-me a existência de uma doença sem cura. Aguentei firme o olhar cauteloso do médico, ouvi até ao fim a descrição do mal que ia matar-me, sem nunca desviar os olhos da sua boca rosada – abrindo-se, fechando-se num jogo de língua, dentes e lábios, e soltando palavras sobre o cancro, a cirurgia urgente, o tratamento por quimioterapia, sobre o esvaziamento dos ossos do meu corpo, sobre o tempo de vida que talvez me restasse. Estranhei a minha serenidade. Mas devo ter pensado, para me consolar, que a vida estava cheia de males maiores do que a simples morte de um corpo. Sempre houvera tragédias bem piores do que essa na história da minha família. Calou-se o médico com a mesma pressa de quando começara a falar comigo. Trazia a lição bem estudada, o número exacto de palavras que tinha a dispensar-me, o timbre neutro da voz, um fulgor de sabedoria nos gestos mais ou menos desolados e tristes, a chamada expressão corporal de que tanto fala a gente do teatro e do cinema. Ficou um silêncio de interrogação a balouçar entre nós, uma corda bamba a que um dos dois devia saltar no ritmo certo, ao passar-lhe por debaixo dos pés.

Olhei-o com firmeza, de lábios cerrados, como quem estivesse a escolher as suas armas após ser desafiada para um duelo de morte. Ele não aguentou a minha força: baixou os olhos, esperou em vão uma pergunta, uma réplica, um lamento, um pranto da minha parte. Limitei-me a fazer-lhe uma vénia discreta, numa reverência que não passou de um leve aceno de cabeça, e a levantar-me do meu lugar. Voltando-lhe as costas, pus-me a andar à pressa pelo corredor adiante até ao guarda-vento da entrada do hospital. Enfrentei o sol que ardia lá fora, de rosto franzido contra a intensidade da luz. Ainda o ouvi a chamar e a correr atrás de mim, a falar-me com severidade do meu internamento imediato e a insistir, irado mas contido, que eu não me podia ir assim embora, sem mais, num estado de uma tal gravidade; tinha de assinar um termo de responsabilidade, um papel, um simples papelinho, insistia ele sempre nas minhas costas, já menos zangado comigo, e uma assinaturazinha minha só para que não adviessem mais tarde problemas legais à sua instituição de saúde. E para que fosse eu a responder, no futuro, por tudo o que me viesse a acontecer, face à minha recusa de tratamento.

Estava uma linda manhã para se morrer. A cidade nítida, as árvores primaveris, eivadas de seiva, o trinar dos pássaros sobre a erva tenra dos jardins. E a brisa à solta, e o tempo a ressurgir na energia de uma nova estação do ano. Mas do que eu mais precisava era de cair no centro da realidade. A minha. Fui-me embora à pressa para casa. Mentindo, dei a vaga notícia à família de que, segundo o médico, tudo ia bem comigo, nada de preocupações, e fugi para o meu quarto. Fechei a porta por dentro e pus-me a chorar, infeliz e encolerizada, dando início à vigília da minha dor em todo o seu tormento, numa espécie de véspera de luto quanto à iminência do meu fim.

*

Data daí, saiba o senhor, a perda dos ossos do meu corpo. Desde então, quase tudo me dói. Agora uma pontada aguda no meio das costas. Depois as articulações de ambos os lados das ancas. A seguir os pés, cravejados por esporões e dentes de pedra. O pescoço põe-se-me flácido. Os joelhos vergam ao peso do corpo, forçando-me a cair. O sofrimento implica enfado e desconforto, um veneno de cólera contra a surpresa de uma doença que me foi pacientemente descrita, com todos os pormenores de uma despedida antecipada da vida.

As dores fazem-se também das nossas misérias. Como disse, basta eu olhar-me a um espelho, no momento de acordar: assusto-me com a minha imagem de velha estriada e caduca. Dois olhos avermelhados, a pele manchada de roxo, onde despontam as oxidações próprias da idade; as mandíbulas sem dentes, uns pêlos inoportunos a espigar e a aflorar às fossas das narinas; e repas escorridas, demasiado lânguidas, em lugar do cabelo farto e na sua moldura de outrora, que em tempos fez de mim uma mulher bela entre as belas – estou a repetir-me -, disputada pelos olhares pueris dos homens. Perder a beleza custa tanto ou mais do que perder a saúde, acredite o senhor.

Um corpo idoso e doente acaba por ser um cardápio de perdas.

A primeira a alarmar-nos chama-se memória. Perdê-la, com a idade, não significa apenas passar a lidar com os mistérios inexplicáveis do esquecimento, mas conhecer os riscos de ordem prática que tudo isso envolve. A pior falta tem lugar na transição da breve felicidade do quotidiano para o desprazer do presente em relação ao futuro. Sempre que se apodera de nós uma melancolia sem explicação, tal significa que o tempo de vida se encolhe dentro da cabeça e da alma. Até os pés iniciaram a sua derrapagem para a terra derradeira, a tal que é cercada por muros altos com ciprestes e carreiros de buxo aparado à mão.

Nunca conheci coisa mais séria, nem menos oportuna, do que a ideia da morte em mim. Garanto-lhe, senhor. Levanta-se-me um remorso por dentro. No corpo. O remorso de ter acreditado que o tempo dura, dura, dura, e afinal limita-se a passar. O de permitir-me ser ociosa e descuidada, a ponto de pensar que a velhice tardará muito a anunciar-se e que a morte só virá a mim depois de acontecer aos outros – os mais ou menos da mesma idade que fui conhecendo pelos anos acima, na roda do mundo.

Vêm-me então, uns após outros, os meus modestos mas aguerridos assombros. O do amor familiar que ficou por dar e receber. O dos pequenos prazeres adiados, como as viagens prometidas e nunca proporcionadas aos nossos. O da gratidão para com as pessoas que acompanharam e protegeram os passos quotidianos da minha existência. Assombros. Assombrações ou coisa parecida, por não ter sido mais compreensiva nem suficientemente generosa com os meus filhos, nem magnânima com o homem do meu coração. O essencial do amor, numa vida a dois, está sempre nos gestos mais simples. Por exemplo, a generosidade da mão a acarinhar a face de alguém num momento mais triste. O abraço na hora furtiva das lágrimas. A atenção comovida no decurso de uma doença, mesmo quando benigna e passageira.

Volto a dizer-lhe: apesar da idade e das dores quotidianas, nem por isso me agrada a ideia de partir. A vida foi sempre a única contínua paixão do meu ser. Amo-a de verdade, com as melhores forças que me restam no coração. Persisto em temer e em odiar a minha morte. Bem que gostaria de viver ainda alguns dos meus sonhos mais amados. Há, porém, um problema: para se sonhar com o amor, é preciso possuir imaginação (coisa que, infelizmente, nunca me assistiu). Talento, também não o possuo. Mas não seria necessário exigir-se-me demasiado em relação a isso de ser uma mulher imaginativa. Quanto ao talento, bastar-me-ia um pouco daquele de que usam e abusam certas artistas e escritoras do meu tempo: umas felizes visionárias e sonhadoras que sempre invejei por terem nascido dotadas do chamado privilégio dos mundos inventados. Eu, não. Nada possuo. Uma criaturinha presa à teia da sua estrita realidade – eis o que sou.


(in «Os Navios da Noite», contos
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2016)

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