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Raízes - Carlos Campaniço


Excerto do novo livro de Carlos Campaniço, "Velhos Lobos".

2022-06-23 09:41:44

Dormitava Sebastião Velho numa cadeira baixinha sob alpendre de cana, aguardando a impiedosa canícula do fim da manhã, quando ouviu a voz de uma criança defronte da sua porta. Àquela hora já as azinheiras ganhavam umas sombras fundas e muito escuras, e ainda era possível a uma orquestra de pardais-dos-telhados bailar de ramo em ramo, num novelo de júbilo, acarretando só para si a atenção que se podia dar à nitidez do horizonte.

Debaixo da azinheira grande, frondosa como uma saia, um menino inventava diálogos na sua solidão campestre. Tinha acabado de forjar uma manada de touros a partir de dois punhados de bolotas quando uma baforada vertiginosa lhe desordenou a posição das personagens. Sebastião conseguia ouvi-lo com nitidez no ofício teatral, alternando vozes, esforçando timbres e vincando gestos, com todo o esplendor dos patrões e ganhões de então. De uma concavidade no velho tronco, que nunca fora aprisco de animal silvestre pela proximidade da habitação, nem abrigo de cão pela estreiteza, nascia o mais imponente solar, rodeado de vasta propriedade, imaginada como a maior de toda a planície, mas que na 12 realidade não passava de um círculo imperfeito de sombra cansada.
Estava o tempo parado sobre aquele mundo, quieto como uma tela exposta, quando o grito de Maria Barnabé acordou o pequeno das suas imaginações e a vida pareceu retomar o seu ciclo de previsibilidade. A criança, de olhos verdes e muito limpos, olhou-a. A mãe, com um aceno de mão, levou-a, por fim, para almoçar.
A casa de Maria Barnabé e de Jacinto Velho padecia de uma pobreza imperturbável. Ainda que limpa como nenhuma outra, por disciplina feminina, deixava entrever os tijolos de adobe nas paredes, denunciando a inclemência dos anos e a incapa- cidade para as melhorias urgentes. «Desde que se mantenha asseada, nunca parecerá uma cabana», dizia Maria Barnabé às filhas para consolo de amor-próprio. Sobre uma mesa comprida de madeira sem toalha, juntavam-se as bocas dos filhos sempre famintos, dos próprios pais e da avó Catarina, a quase velha mãe de Maria Barnabé que já habitava com eles antes de qualquer criança ter nascido entre aquelas paredes. Parecia uma cantina militar à hora das refeições, ainda que a comida fosse sempre escassa, não obstante a imaginação de Maria, a horta sazonal ou mesmo a caça furtiva que Jacinto trazia para casa.
Sebastião, cujos olhos luminosos se tornavam mais óbvios com o apetite, sentou-se ao lado da mãe sem dizer palavra, mas continha em si, ainda vivos, todos os diálogos das suas histórias. O lugar junto à progenitora era um privilégio que os demais irmãos aceitavam naturalmente, porque todos eles haviam sido, em devido tempo, os mais pequenos e os pro - prietários da mais cuidada atenção.
Após as refeições, Jacinto Velho saía da mesa sem dizer coisa e vinha fumar um cigarro enrolado com os pensamen - tos mais cerrados. Os filhos já homens – Moisés e Abel – seguiam-no para o alpendre de cana e assistiam àquele ritual, 13 desejando o dia em que o pai lhes oferecesse um cigarro, enquanto as gémeas, Ana e Mariana, se juntavam à mãe na limpeza. Era nesse momento que Sebastião regressava à azinheira grande e o mundo voltava a ser o que sempre fora: um cantinho onde cabiam todas as efabulações.
A casa onde os Velho habitavam era um monte isolado, plantado perto das margens de uma ribeira que secava no Verão e no Inverno alagava as margens com um caudal vio - lento e imprevisível. Causadora daquela edificação fora uma fonte de água salobra, de onde os animais bebiam logo que a ribeira secava, e que era a única de água potável em muitas léguas em redor. No centro de um azinhal denso, numa planície que ambicionava erguer-se em planalto, haviam-se construído aquelas paredes um século antes, para que os porqueiros vivessem perto do seu gado, ali, onde era possível engordar porcos com o alimento do chão. A propriedade era, contudo, uma língua de terra embutida entre duas enormes propriedades feudais, muitíssimo limitada para os animais de pastoreio.

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