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Raízes - Luís Vendeirinho


A Fuga (conto de Natal)

2022-11-25 10:00:00

A FUGA

Conto de Natal

Noel, nome de baptismo que tanto lhe merecia os gracejos por parte daqueles com quem privava na sombra da vida adulta, como a indiferença do juiz perante quem se fizera hábito ser presente, nunca dedicou uma simples hora da sua vida para pensar no motivo de vir a ser despejado no convívio dos marginais que eram a única amizade que conhecia. Na barra do tribunal dos homens, o magistrado começou por lhe dar conselhos, por lhe abrir, com palavras, a porta invisível da reconciliação com a lei, sempre com promessas de indulgência que não tinham eco no íntimo do visado. Noel intuía que, se contra si não havia qualquer prova para ser alvo de pena, devia observar silêncio para ser devolvido à liberdade. O juiz, com o passar do tempo em aquele confronto se repetiu, foi invadido pela urgência em fazer mais do que justiça e, sem ter consciência do facto, tornou-se vingativo. O bando que obedecia à imaginação de Noel encontrou novos alvos para sobreviver: a estatuária dalgumas capelas, um santo aqui, uma santa ali, e algumas alfaias cujo metal fazia valiosas também. Na noite da detenção imprevista, estava à cabeceira do pai doente que não entendeu o porquê de lhe levarem o filho amado. A vida no presídio, ao invés do que supusera, não era muito diferente daquela a que se tinha habituado no quotidiano fora dos muros. Entre rotinas e laços humanos, só a observância do respeito pelos guardas foi difícil de assumir. Foi um deles, dos carcereiros, que poucos dias antes da celebração natalícia lhe murmurou a triste nova de o pai do Noel estar prestes a falecer. Implorou, invocou clemência, jurou por tudo, ajoelhou ante o tribunal para fazer a derradeira visita, porque castigo maior não concebia. Em vão. A consoada era uma oportunidade sagrada para conviverem no presídio, para momentos de alegria dignos desse nome. Entre os preparativos, uma voz da autoridade soou alto, a confusão instalou-se: o Noel tinha escapado. Como não sabiam, nem por onde ou por que arte, mas era um evadido. Reposta a ordem, todos comentavam o feito e o refeitório encheu-se de conversas, de música e do som dos talheres. No ar pairava uma dúvida geral sobre o destino do fugitivo. A noite ia avançada, já o cansaço dos corpos pedia repouso, quando o imprevisto aconteceu: um guarda assomou à porta do refeitório e gritou “vejam quem regressou a casa!” A presença do Noel foi recebida com o aplauso geral, e no festejo as perguntas ficavam para mais tarde. O recém-chegado sentou-se entre dois convivas amigos e pediu um copo de vinho. Um deles, à sua direita, murmurou-lhe “Por onde andaste tu? Que foste fazer?” O Noel pensou dois segundos, olhou-o de soslaio e sorriu. “Fui-me despedir, e aproveitei para pedir desculpa. Agora estou aqui ao teu lado. Aqui onde pertenço”.

 

Luís Vendeirinho

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