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Raízes - Rubem Fonseca


Agruras de um jovem escritor

2024-12-18 14:24:53

Agruras de um jovem escritor (excerto, em memória de Rubem Fonseca)

O dia começou errado já de manhã, quando fui à praia. Eu não podia ver o mar, me fazia mal, por isso atravessava a avenida Atlântica de olhos fechados, depois virava o corpo, abria os olhos, e andava de costas pela areia até encontrar meu lugar, onde sentava de costas para o oceano. Quando estava atravessando a rua, senti um medo súbito, como se um carro fosse me atropelar, e abri os olhos. Não vi carro nenhum, mas vi o mar, apenas um segundo, porém um desgraçado instante da visão dantesca daquela horrenda massa verde-azulada foi o suficiente para me dar uma crise de suores frios e vômitos, ali mesmo na calçada. Quando o ataque passou fui para casa, tirei o calção e arriei na cama, esgotado, mas logo tocaram a campainha e quando olhei pelo olho mágico vi no corredor escuro uma figura toda encapuzada. Fiquei apavorado, eu estava sozinho, Lígia tinha viajado, só podia ser um ladrão querendo me assaltar, ou um assassino, a situação na cidade não andava boa. Tentei ligar para a polícia mas o meu telefone estava enguiçado e o embuçado tocava a campainha insistentemente, pondo os meus nervos em frangalhos. Socorro!, gritei da janela, com a voz fraca de medo, mas o barulho da rua não deixava as pessoas me ouvirem, ou então elas não se incomodavam. A campainha continuava tocando, o mascarado não ia embora e eu nu, dentro de casa, lívido de medo, sem saber o que fazer. Me lembrei que na cozinha tinha um facão grande. Abri a porta brandindo o facão ameaçadoramente, mas era uma freira velha quem estava lá em pé, com aquela coisa preta que elas usam na cabeça. Eu havia me enganado.

Quando me viu nu, de facão na mão, a freira saiu correndo, gritando pelo campainha tocou novamente; era a polícia. Abri a porta e o polícia me deu uma intimação para depor na segunda-feira, por causa da queixa da freira que, dizia ela, tinha batido na minha porta para pedir esmola para os órfãos e fora ameaçada de morte. Não tem vergonha de andar nu?, perguntou o polícia. Incrível, não se podia andar nu nem mesmo dentro de casa. Domingo foi ainda mais complicado. A Lígia, que voltara inesperadamente, me viu no cinema com uma garota, e ali mesmo, enquanto o filme estava passando, ela me encheu de pancadas, um escândalo, levei vinte pontos na cabeça. Eu não posso continuar vivendo com você, olha o que você fez comigo, eu disse, quando ela foi me apanhar no hospital, e Lígia abriu a bolsa, me mostrou um enorme revólver preto e disse, se me enganares com outra mulher eu te mato. Confusões que começaram muito antes, quando ganhei o prêmio de poesia da Academia e meu retrato saiu no jornal e eu achei que ficaria instantaneamente famoso, com as mulheres se atirando nos meus braços.

 

Continua... 

 

 

 

 

 

 

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