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Raízes - Inês Botelho


Entre a multiplicidade

2010-08-08 00:00:00

Entre a multiplicidade

Entre a multiplicidade


No contacto com leitores há duas perguntas quase inevitáveis: onde se inspira e porquê uma ligação às ciências e à literatura.

Nunca encontrei um objecto, pessoa ou paisagem que fosse particularmente útil a auxiliar o processo criativo, pelo que não consigo precisar algo como uma fonte recorrente para a inspiração. Há diversas origens para uma ideia, vários factores que me predispõem a optar por determinada via. Assim, a resposta mais honesta é tão vaga quanto vasta: tudo.

No segundo caso a explicação é simples. A maioria da minha família trabalha dentro das ciências, mas habituou-se a cultivar o interesse e gosto pela artes. Transmitiram-me essa ideologia, provavelmente de um modo mais eficaz do que esperavam. Quando tive de escolher uma área de estudos, sempre quis as ciências. O plano era construir uma carreira dentro da investigação científica e forrar as paredes da casa com livros dos mais diversos géneros. Quando me candidatei à faculdade, Biologia era a minha primeira opção. Ainda hoje acho que foi a escolha certa, mas claro que, entretanto, modifiquei o plano. Liguei-me mais activamente à literatura do que às ciências e percebi que ia continuar assim. Por isso tornou-se lógico prosseguir estudos dentro da área das Letras. Mas não renego uma em favor da outra. Não poderia.

Aliás, a incursão nas artes por homens e mulheres originários das ciências não constitui fenómeno raro nem significa que o façam com menos afinco ou destreza. Estranho, parece-me, é o autismo assumido de alguns que não só admitem nada saber de certa área como se orgulham de nada querer saber. Ou então, referindo-se às artes, assumem-nas como mero entretenimento para ocupar o tempo e não como uma forma de enriquecimento.

A cada um as suas escolhas, porém uma separação tão demarcada afigura-se-me não só indesejável como prejudicial. Quem se restringe a uma realidade de contornos estritamente definidos, não se limita apenas enquanto indivíduo. Revela-se um profissional incapaz de interagir com outras profissões e promove uma sociedade de ilhas. Não ilhas desertas, habitadas por um único náufrago perdido, mas ainda assim lugares solitários e tendencialmente monótonos.

Nunca como hoje tivemos especialistas tão especializados neste ou naquele assunto específico, o que tem permitido avanços significativos no conhecimento das sub-áreas em causa. Contudo, conhecer as partes sem as conseguir perceber no todo é pouco relevante. Uma sociedade em que cada um fala para seu lado está a correr para o caos e a total confusão; um discurso de tolos.

O mundo revelou-se mais vasto do que prevíamos, mais múltiplo do que imaginávamos. Não há uma verdade, mas várias. O centro está em todo o lado. O conhecimento total, a compreensão absoluta, essa demanda que com a inocência dos dez anos me decidi a tentar, é impossível ao indivíduo e improvável para a sociedade. Quem pretende saber tudo acaba a saber nada, um homem dos sete instrumentos que os toca a todos e de nenhum extrai música, apenas ruído e umas arranhadelas harmónicas.

Tem de se escolher, sem dúvida, mas não desprezar, não anular conscientemente. Os sábios encerrados em torres de marfim desapareceram, pertencem a um passado em que a realidade e o mundo pareciam mais simples, mais fáceis de abranger. Hoje os sábios conversam para minorar a ignorância. Necessitamos de diálogo e interacção entre pessoas, entre áreas.

Duvido muito que a literatura descubra a cura do cancro de pulmão, ou que a ciência identifique os genes responsáveis pelo conjunto de idiossincrasias e atitudes que formam cada eu. Contudo, enquanto sociedade, enquanto individualidades, precisamos de ambas. Quando a ciência avança e entende melhor o que somos e o mundo em que somos, cria o potencial de uma vida mais plena, mais equilibrada e menos receosa de um fim promovido por bactérias, vírus, doenças degenerativas ou maleitas de outros tipos e actuações. A arte rodeia-nos do que fomos, somos e talvez seremos, mostra-nos possíveis respostas e inunda-nos de perguntas, faz-nos avançar, rasga feridas na ignorância e convida à percepção.

Porque havemos de dizer disto sim daquilo não? Quem propositadamente se recusaria a ouvir uma única música que fosse? Do mesmo modo, porque dizer nunca irei a uma exposição, nunca lerei um livro, nunca dançarei, nunca farei um bolo, nunca saberei um mínimo de economia, nunca me interessarei por ciência, nem sequer pelos seus meandros mais básicos? Queremos mesmo ser deliberadamente ignorantes?

Em vez de excluir, experimentemos. Exista-se um pouco melhor entre a multiplicidade.


Inês Botelho

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