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Raízes - Ana Cristina Silva


2010-08-31 00:00:00

Pressinto que devoras estas linhas, tentando descobrir o que quero de ti, o que insisto em querer de ti, após meses de silêncio. E de facto o que poderei eu pretender de ti?

França. Janeiro de 1918.

Caro Eduardo,

Pressinto que devoras estas linhas, tentando descobrir o que quero de ti, o que insisto em querer de ti, após meses de silêncio. E de facto o que poderei eu pretender de ti? Amanhã posso estar morto ou porventura ainda hoje. Na guerra de trincheiras todas as mortes são a mesma morte. Os registos das circunstâncias podem ser diferentes, mas nada alteram porque os ataques do inimigo aqui são súbitos e repetitivos, lançando projécteis de destruição sobre o recinto. Se a neve deixar de cair ou se o céu se abrir a uma súbita luminosidade, é provável que a aviação inimiga avance para um bombardeamento. Uma dessas flotilhas de aviões que passam a rasar as trincheiras, impunes e inacessíveis à artilharia antiaérea, com acrobacias que são outras tantas negaças à resistência dos soldados e que metralham as nossas forças de infantaria. Nós também matamos, sem reconhecer, tal como eles, traços humanos ao inimigo, mas as contas são quase sempre favoráveis aos alemães. Mais provável do que um ataque aéreo é que desate a cair uma chuva torrencial de obuses, provocando em minutos dezenas de baixas. A devastação está sempre à espreita, tendo em vista atingir homens e abrigos, arrasa tudo menos este pânico colectivo que vai reduzindo, em cada um de nós, a estatura do seu espírito aos nervos loucos de um fugitivo.

Mata-se e morre-se diariamente sob o olhar indiferente dos que sobrevivem. Poucos são os maqueiros que, debaixo de fogo, lutando abnegadamente contra o temor das balas, sairão em busca dos feridos que caíram na terra de ninguém. Os soldados retidos nestas trincheiras tornaram-se espectros verdadeiramente evanescentes. Como nenhum de nós sabe se chegará vivo ao dia seguinte, a dor dos outros apenas desperta um vago eco de antigas comoções. Toda a sensibilidade se anula. Um corpo despedaçado é sobretudo um incidente. Os gemidos não passam de sons que se juntam ao barulho infernal da artilharia. Os mais afortunados transformam os gritos num rumor ou numa música. Os verdadeiramente loucos usam as palavras como evasão para poemas de amor. A maior parte encolhe-se, cola-se ao chão face ao rodopio infindável das balas.

Ainda falamos uns com os outros, mas as palavras não significam absolutamente nada. Resta-nos pouca piedade pelos vivos e insipientes condolências pelos mortos. Agimos com perseverante indiferença e com desalentada atenção, esforçando-nos sobretudo por não se sermos atingidos. Estou tão exposto à morte quanto os homens sob o meu comando, a única diferença é que faço o possível para que eles pensem o contrário. De um momento para o outro, tal como a qualquer soldado, podem matar-me e o meu corpo fragmentar-se em minúsculos pedaços ao ponto de não dispor de um cadáver que me acompanhe no meu próprio funeral. Isso, aliás pouco importa, porque por estas bandas não há tempo para ritos fúnebres. Alguns soldados são enterrados apressadamente nas proximidades e emergem de novo à superfície da terra depois de uma nova saraivada de granadas. Após o impacto no solo, pernas e braços dos cadáveres voam como um punhado de grãos lançados no ar, dispersos em todas as direcções pelos desordenados vendavais das armas. Quando voltamos a enterrá-los não temos tempo de separar os pedaços e os corpos seguem misturados para as entranhas da terra. Já não possuímos rituais; só temos sensações violentas, sem qualquer ligação entre si. É curioso, no entanto, constatar como quase não incluímos nelas o ódio ao inimigo. Pode haver momentos de raiva, desejo de vingança, mas o terror torna impossível esse ódio coriáceo e frio, à espreita do momento certo para a retaliação. Não existe espessura suficiente entre cada homem e a sua morte para que persista a dignidade. O medo fez de nós uns estranhos da compaixão. Na noite imprevisível, ninguém está a salvo.

Muitos dos soldados foram forçados a vir para o corpo expedicionário português, arrancados de aldeias remotas de província onde viviam. Aos poucos vão-se desagregando por serem obrigados a viver este sobressalto diário. A vida nas trincheiras é uma perpétua agonia, enquanto isso, alguns simplesmente morrem quando uma bala os atinge no coração ou no pescoço. Hoje o céu está nublado e provavelmente nem haverá mortos, mas dentro deste buraco já só habitamos o próprio corpo como se fosse o inferno.

Talvez não consigas imaginar o que descrevo. Poderia colocar nesta carta mais meia dúzia de incidentes, para compor outros tantos quadros de horror. Talvez assim compreendesses. Mas de que serviriam essas histórias? Não serve de nada escrever sobre isto, sobretudo quando a argila a partir da qual moldamos as palavras apenas retém uma ténue sombra da realidade. Nada do que escrevo nesta carta fixa a maneira como os homens acasalam com os piolhos e os percevejos à medida que os sonhos vão morrendo. As minhas palavras não tem a loquacidade suficiente para falar das mordidas dos ratos nem da tortura que esses bichos trazem ao sono dos soldados. As minhas palavras são inodoras e não trazem consigo o cheiro nauseabundo dos mortos, nem conseguem fazer entrar na tua mente o brilho dos olhos dos moribundos. Talvez um poeta soubesse transformar a linguagem e cada uma das suas palavras servisse de alavanca para levar até ti o mundo da guerra. Mas as palavras de um militar só servem para dar ordens e matar.

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