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Raízes - Lídia Jorge


Prefácio do livro O Estranho Dever do Cepticismo

2013-04-01 00:00:00

Prefácio do livro O Estranho Dever do Cepticismo, por Lídia Jorge.

É muito curioso que Mário Mesquita ofereça tão denodadamente o peito às balas ao assumir‑se como um céptico e ao rotular esta sua recolha de comentários, escritos ao longo de vinte anos, com a áspera bandeira do cepticismo. Inteligente e lúcido como é, o autor de O Quarto Equívoco sabe bem quanto, ao anunciar este seu quinto livro com semelhante frontispício, selecciona à partida o universo dos seus leitores, avisando todos aqueles que estimam os habituais livros de crónicas, de que este não é o seu mundo.
De forma bem demarcada, este volume dirige‑se aos que ainda não se deixaram seduzir pela leitura da mancha impressa servida às tiras e aos ziguezagues, nem pela comunicação oferecida aos pedacinhos. Em sentido contrário, O Estranho Dever do Cepticismo provém das páginas de jornais de grande circulação, mas reclama para o seu círculo um leitor inclinado à elucidação baseada na descrição dos contextos, um leitor habituado ao confronto das opiniões com argumento e cultivado na paixão pelas ideias. À partida, Mário Mesquita afasta‑se deliberadamente daquilo que passou a ser a prática comum da cedência calculada na arte da sedução em papel. Contra a corrente, a sua regra consiste em não aligeirar o invólucro quando o conteúdo combate a singeleza e a futilidade.
Mas este princípio de coerência é apenas a superfície de um território profundo. Porque o céptico, ao contrário do que é voz corrente, não é o que não crê em nada, é antes aquele que pergunta e encontra através da interrogação, a fórmula privilegiada de narrar o seu espaço de intersecção com a dúvida. O céptico dos cafés desfaz de tudo, incluindo da possibilidade de conhecimento, enquanto o céptico filosófico constrói um mundo e o seu processo de demonstração por tentativas costuma ser ao mesmo tempo exigente, subtil e delicado. Ora um dos principais objectivos que une estes cento e quarenta e oito comentários jornalísticos consiste em tentar mostrar a complexidade de que se reveste a realidade e a forma como, para além da primeira aparência, novas evidências surgem em torno dos acontecimentos públicos, dos factos históricos e dos seus intérpretes, desde que aos dados primitivos se juntem outros dados.
Li pela segunda vez estes textos de Mário Mesquita, muitos deles pela terceira, já que fui tendo acesso a algumas das publicações originais, e agora, ainda mais do que então, fico com a ideia de que o seu comentário se faz pela anatomia lenta daquilo que à primeira vista se oferece com simplicidade, com a intenção de advertir o destinatário para que convoque toda a sua inteligência e o seu discernimento, de modo a encarar por si mesmo a outra face dos factos. Daí que muitos destes comentários seleccionados pelo autor, e agora republicados, acabem por se desprender da matriz da crónica política onde têm a sua raiz, para se transformarem em ensaios, quer pela ramificação da estrutura quer pela densidade do argumentário. São textos que transcendem a problematização passageira e casuística do facto social e político, escritos que conduzem a um ensinamento de conduta crítica e de cidadania, e por essa razão, ainda que não pela via mais comum, apontam para uma ética e uma moral cívica.
Aliás, o método de semear sinais na prosa, mais do que de colhê‑los, torna‑se bastante evidente na forma muito própria como Mário Mesquita traça os perfis das suas figuras nacionais e internacionais, de maior ou menor relevo. Partindo de um pretexto próximo, procura em torno de cada uma delas juntar ao lado visivelmente histórico segundos e terceiros planos, de maneira a provocar uma outra forma de encarar a hagiografia social. Através da justaposição de planos diversos, quando não opostos, o autor procura mostrar que a santidade cívica não é feita de uma só peça, que o material humano está limitado pela sua própria contradição. Por essa razão, resulta bem que o acaso cronológico, ou a simples determinação do autor, tenha conduzido a que a primeira parte, dedicada às «Pessoas», onde se alinham quarenta e cinco perfis de personalidades celebrizadas que se adentram e depois multiplicam pelos outros capítulos da recolha, abra com o perfil de Hans Robert Jauss, o célebre professor da estética da recepção, que em jovem fora oficial do exército às ordens de Hitler.
De certa forma resulta sintomático que na abertura dessa série de perfis, e dando o tom, ao fim e ao cabo, ao volume inteiro, a primeira personagem dê azo a que se reproduza a ideia de que um dia pode ser necessário termos todos de escrever as nossas memórias contra as nossas recordações. Um bom primeiro exemplo que nos introduz no campo da nota biográfica, sua parte clara e sua parte esquiva, ou mesmo de todo inapreensível. E o formato repete‑se nos textos sobre De Gaulle, Freud, Orwell, Mitterrand, Steiner, Günter Grass ou João Bosco Mota Amaral, Ramalho Eanes e Jorge Sampaio, para não falar de Mário Soares, uma das figuras que o autor mais convoca, e com quem sob os nossos olhos dialoga, por vezes disputa e por vezes incita, num arco de tempo muito mais amplo do que estes vinte anos, formulando juízos, sem no entanto proceder a julgamentos definitivos. Não os faz nem sobre Soares, nem sobre Cavaco, nem sobre ninguém. Bem ao contrário do que é comum no lastro da crónica portuguesa vulgar, ao longo destes comentários, em matéria de julgamento, os mortos e os vivos mantêm os seus destinos em aberto.
Diria mesmo que através da multidão de todas estas figuras convocadas por Mário Mesquita para o interior deste livro perpassa a concepção de que cada homem e cada mulher é feito de vários homens e várias mulheres, salvos ou afundados segundo o efeito do seu préstimo histórico e da sua decência cívica. O que significa que neste livro, mais uma vez, a concepção benevolente do céptico, mais irónica do que opiniosa, mais lúcida na interrogação do que conclusiva na resposta, faz o seu caminho. A sensação que se tem, ao lermos estes comentários reunidos, é que nenhum deles foi escrito outrora, todos são actuais e deles fazemos parte porque os seus juízos não são fechados nem definitivos, e o seu brado nunca é o de quem triunfa sobre os outros em certeza e sabedoria. Aliás, eu não sei onde Mário Mesquita filia o tom da sua voz autoral. Mas diria que não anda longe daqueles que, como lembra Ortega y Gasset, para se fazerem ouvir, nunca precisaram de falar para a Mesopotâmia nem se dirigiram à Humanidade. Textos como «O Colecionador de Cabeças», «O Rosto Cibernético de Jesus», «História e Mentira» ou «O Álbum do Totoloto», repletos de humor e fantasia, fazem encostar o autor ao plano ficcional e a voz que deles se desprende assume inegável recorte literário.
Outra razão para a sensação de proximidade com os textos que constituem O Estranho Dever do Cepticismo provém sem dúvida da própria contemporaneidade dos factos a que alude, da sua relevância como elementos de referência global, acontecimentos que entretanto assumiram o carácter de factos patrimoniais, mas que, pela curta distância a que se colocam no tempo, ainda nos acenam como não resolvidos. Na verdade, entre 1990 e 2010, as sociedades contemporâneas descreveram um arco surpreendente cujos efeitos, uns benéficos outros funestos, continuamos a digerir e ainda fazem o nosso presente. Mário Mesquita examina‑os
com uma paixão escondida, uma tenacidade própria dos lutadores intelectuais que cedo se impuseram a si mesmos raramente dizer eu, a não ser em termos de testemunha ou sujeito de pensamento.
Filhos do mesmo tempo, ao lermos estes comentários jornalísticos, refinados comentários, podemos ir de novo ao encontro das imagens da queda do Muro de Berlim, reviver o optimismo dos anos noventa a empurrar as velas enfunadas da Europa de então, reconstituir o arco de triunfo erguido ao modelo da economia de mercado, observar como os Cinco Continentes se transformaram numa pangeia do capitalismo sustentado pela globalização, podemos recordar como o sistema bancário nos proporcionou viver no futuro, ou ainda examinar como no meio de uma espécie de esperança total na virtude do ideal democrático, se popularizou a ideia do fim da história. E para contrariar mais do que para surpreender, podemos rever como o fenómeno mediático se cruzou com o político e o empobreceu, de tal forma que em certos momentos países houve que se transformaram em manicómios, como dá conta a extraordinária sequência dos dez comentários sobre a Itália, com que se encerra o capítulo «Crises». Também podemos revisitar a forma como se reacendeu o fundamentalismo islâmico, a ameaça que começou a pairar sobre tudo e sobre todos em qualquer lugar, com seu epicentro no 11 de Setembro de 2001 e a consequente e absurda segunda guerra do Iraque. Revisitamos esses e muitos outros momentos que influenciam o dia‑a‑dia de hoje, mas nunca de forma comum, nunca com uma perspectiva descomprometida, nunca convencional. Ler os comentários de Mário Mesquita sobre estes aspectos, dispersos em «Conjunturas», «Instituições», e «Crises», equivale a viajar para o interior da carvoeira da História quando o fumo ainda não se apagou. Manuseando o seu método, o método exigente do céptico, de desfecho inconcluso e aberto, o autor chama‑nos a participar retrospectivamente na reinterpretação dos factos, amparados pela distância relativa do tempo. O que quer dizer que Mário Mesquita nos convoca a participar de um pensamento que se está a processar, um pensamento que em última instância impele a uma acção no presente.
Principalmente porque a parte de leão, no conjunto destas reflexões, diz respeito a Portugal. O significado da sua Revolução, a qualidade da sua democracia, os jogos florais curiosos em torno da datação da era democrática, os incómodos sucessivos em torno da Constituição Portuguesa, a relação fungível com os países saídos das ex‑colónias, o caso do nosso papel no Mundo, a debilidade das instituições e suas figuras negras proeminentes, o enredo das elites, que é coisa de mistério, a previsão dos nossos fracassos, a submissão da comunicação social aos interesses, a menoridade da vida mental, são temas recorrentes que atravessam este livro do primeiro ao último capítulo, a propósito de quase tudo, sempre que surge escrita a palavra Portugal. E mais não digo. Que os jovens universitários portugueses leiam estes comentários‑ensaio e alguém os ajude a circular entre os meandros por vezes cifrados que constam destas páginas, se quiserem avaliar o valor da subtracção entre o país que somos e o país que poderíamos ser.
De modo que não tem razão Mário Mesquita quando se espanta de que não foi capaz de prever o momento dramático que coincide com a publicação deste livro. Publicados dia a dia, textos desta natureza esvaem parte da sua força persuasiva na fugacidade do quotidiano preenchido de mil sinais. Mas agora, uma vez reunidos, é possível ver como através de dezenas destes comentários se constata que o diagnóstico se encontrava feito. Vê‑se através destas páginas de argumento largo, lento, irónico, e até de onde em onde mordaz, que Mário Mesquita foi capaz de radiografar a civilização em que vivemos, e o momento político que nos condiciona. Lendo ou relendo estas páginas, percebe‑se que Mário Mesquita viu o fantasma vir a caminho, vislumbrou‑lhe as roupas e pressentiu‑lhe as passadas. Mas não sabia, não podia saber, que à nossa debilidade hereditária iria juntar‑se a mudança profunda que está a alterar a relação entre os países, e o modo como os outros nos encaram.
Publicados agora, estes comentários são um livro branco sobre o nosso estado de alma. Lido como deve ser, ele não só ajuda a redigir a nossa memória colectiva próxima como constitui um desafio para a criação de um novo documento cívico de que estamos carenciados.
Ou por outras palavras, O Estranho Dever do Cepticismo não contém uma visão metafísica nem teleológica da história. Não precisa. O seu território de crença é bem outro. A nós, leitores, basta‑nos compreender que um estranho desejo de que se erga uma nova fraternidade atravessa as suas páginas, e esse é um estímulo poderoso para intelectualmente não nos sentirmos sós.

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