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Raízes - Mário de Carvalho


CONSELHO A UM NOVO ESCRITOR

2013-05-16 00:00:00

Tenho repetido em vários lados uma afirmação de Óscar Lopes, em certa homenagem a Aquilino, sobre um desejável leitor (leitor ideal?) «capaz de ser autor dos livros que lê». Também insisto em acrescentar «salvo milagre ou genialidade» quando enuncio um princípio, uma regra, ou uma sugestão. Não é gosto do pleonasmo. É a urgência da ênfase.

Nas quatro linhas anteriores menciono Óscar Lopes, Aquilino, aludo ao «leitor ideal» (Humberto Eco) e utilizo os vocábulos «pleonasmo» e «ênfase».

Repare que não sou especialmente erudito, nem culto, nem sequer bem informado. Até considero sinais de pobreza o abuso lexical ou a exibição de nomes. Os anglo-saxões chamam a esta última: dropping names. A afectação é irmã gémea do ridículo.

Em todo o caso, estranharia que alguém se metesse a escrever sem suspeitar sequer do que eu acabo de falar. Há um mínimo de domínio da língua, dos seus autores, e da reflexão sobre o texto sem o qual talvez não valha a pena prosseguir.

Não estou a dizer a alguém que desista. De forma nenhuma. Eu nunca me perdoaria se desencorajasse um autor novo. Seria violentar a minha própria memória, onde aparecem – garanto-vos – lances muito duros.

Estou apenas a sugerir ao novel autor que não tenha pressa. Páre para ler. Tem toda a vantagem em ler, ler, ler, anotar e comparar. Não se esqueça de que os autores que ao longo da história vêm constituindo o cânone não têm idade nem conhecem a morte. Continuam (e continuarão) disponíveis e a interpelar-nos.

Se tiver a estrutura de um verdadeiro escritor verá que a pouco e pouco vai ficando deslumbrado com livros como a Ilíada, Almas Mortas, ou O Tio Goriot. Não quero dizer que sejam estes. Eu disse «como». Ou seja, exemplifiquei, quase ao acaso, de entre os tais que estão lá no limbo. É admissível que me digam: «odeio o Tristram Shandy, mas não passo sem A Morte de Ivan Ilich», abomino a Divina Comédia, mas o Hamlet deslumbra-me. E seguem-se centenas de et coetera e milhentas combinações possíveis e estimáveis

É que, cara candidata a escritora (*), irá gostar desveladamente de uns, a ponto de os ler e reler e anotar, com a mesma devoção com que os pintores copiam e recopiam os seus clássicos. Irá, pelo contrário, odiar ferozmente outros, mas sabendo porquê e onde. E acontecer-lhe-á uma outra coisa estranha: saberá reconhecer qualidade também a livros que detesta. Depois, com o tempo, ocorrerão transmutações entre as várias categorias, tudo sempre em errático movimento, como numa nuvem de poeira, que se sacode, porque o leitor também está em movimento.

Curiosamente – paradoxos da vida – adquirirá também o direito ao mau gosto, isto é: a filiar na sua idiossincrasia uma preferência, não digo por certo patinho feio, mas por certo filhote de abutre. Se tiver com quê, ninguém se atreverá a censurá-lo. Qualquer milionário, querendo, pode permitir-se a tineta de preferir os óculos de sol da loja do chinês.

Para ser franco, conheço de ginjeira a matéria de conselhos a jovens escritores. Às vezes farto- me de rir. Outras vezes, franzo o cenho à descarada exploração comercial. Na melhor das hipóteses, não me aquenta nem arrefenta. Mas há uma advertência que eu gostava de deixar bem gravada em perene bronze: antes de ser o autor das próprias obras, habilite-se a ser o autor das obras dos outros.

(*) Mudança deliberada de género. Concessão pachorrenta do signatário ao literalismo.

MdC
www.mariodecarvalho.com
07-05-2013

Comentários


A mostrar os últimos 20 comentários:

António Filipe, 2019-11-08 13:06:55

MdC admoesta, intolerante, as páginas vazias expostas pelas vitrinas, sem conteúdo que se pegue... insufladas de marketing, pairando descaradas num universo incontido onde se proclamam semelhantes, sem o poderem ser! Autor, tem limites incomensuráveis e isso... ainda há quem saiba!

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