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Ana Espada , 04/08/2016 15:49
Eu poderia chamar este livro de “O Desejado” pois procurei-o durante muito anos.
Este esgotado, creio que há reedição mas este é de alfarrabista, um mundo dos livros que adoro, sejam alfarrabistas ou outra qualquer forma de segunda mão.
É m livro perturbador, quase claustrofóbico no que é a miséria humana, a busca de um mundo melhor que afinal talvez não exista.
“- O Manuel da Bouça vai para o Brasil…
As crianças ouviam os pais comentar a novidade e achavam-na tão extraordinária como a morte. Os homens, mesmo os mais timoratos, aplaudiam a resolução – e em quase todos sles existi, secreto, o desejo de imitarem o audacioso.
(…)
Formara-se rapidamente em volta do Manuel da Bouça, um halo de respeito e de curiosidade. Desde que resolvera partir era outro homem para o lugarejo. Enxergavam-no com outros olhos e surpreendiam-lhe uma estatura diferente daquela que até ali conheciam. E ele próprio adoptara uma máscara de orgulho: os lábios mais franzidos, o bigode mais retorcido, as linhas mais salientes e mais sóbrios os gestos.” (pp. 29-30)
Portugueses, povo timorato e corajoso, além deste desassossego para além do mar, tem a noção ancestral dos perigos marítimo, ainda que estes não verguem, a imensos, a ansia de os enfrentar. Custe o que custar.
“Da época em que as naus levavam meses sem fio na travessia, vinha ainda uma lufada de terror e superstição esfriar o ânimo dos mais fortes. Nem eles sabiam bem porquê, mas a hipótese de irem para o Brasil fazia-se sempre acompanhar dum estremecimento de perigo. Febres? Naufrágios? Tudo isso e mais a imaginação a labutar no desconhecido. A tradição sufocava-os, dava-lhes calafrios, sempre que admitiam a ideia de partir. Era como se fossem lutar com a morte, até um deles sair vencedor.” (p. 31)
Conhecemos as condições de quem atravessava o Atlântico em 3ª classe.
Enquanto o ambiente físico é minuciosa e poeticamente descrito (o que não me é particularmente agradável desde que li “Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett – são gostos!), as características psicológicas das personagens não o são. Porém, nas entrelinhas e nos diálogos ficamos familiarizados com todos, o que me parece de particular interesse na arte deste autor. Mais ainda, serena mas nem assim menos impressionante, tomamos consciência de que se a escravatura tinha terminado oficialmente no Brasil, ela ali estava, agora para os imigrantes.
“À medida que os imigrantes entravam na sala, ele ia-os envolvendo num olhar esperto de tangomão, muito habituado a avaliar a energia de cada um. Atrás dele aguardavam outras figuras, outros fazendeiros à espera de ver para se abastecerem de serviçais.
O funcionário, aglomerados os candidatos, murmurejou em italiano, que era o idioma da maioria, as condições do coronel Borba, para contratar os homens de que precisava: oito horas de trabalho cento e cinquenta mil réis por mês e casa, sendo as comedorias às custas de cada um. Na ‘fazenda’ de Santa Efigénia cultivava-se o cafeeiro, o milho e outros cereais. O senhor coronel também não se importava de aceitar dez homens, á empreitada para o seu cafezal: pelo trato de cada mil cafeeiros pagava duzentos mil réis. De qualquer maneira, o contrato dos vinte trabalhadores seria por um ano. Que escolhessem.” (p. 169)
Nós, que estamos com Manuel da Bouça desde que decidiu emigrar, sentimos a sua dor, desilusão e desalento com o que encontra.
Depois, quando a pungência da sua situação é enorme, surge algo inesperado (para mim, completamente inesperado).
Um romance perturbador que retrata uma busca por um El Dorado já no século XX que levou muitos incrédulos (que também teriam que ter um espírito irrequieto) a situações que nunca aceitariam na sua própria terra. Para um dia, talvez, descobrirem que era em casa que tinham o seu tesouro.