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Sinopse

(...) Este problema de ver o que eu tentava fazer leva-me aos críticos e ao risco de provocar um bocejo. São tristes estas questiúnculas entre escritores e críticos. O público habituou-se tanto a elas que pensa, como para o caso de birras entre crianças: «Ah, sim, coitadinhos, lá estão eles outra vez!» Ou então: «Vocês, escritores, recebem todos esses louvores, e quando não são louvores recebem pelo menos toda a atenção... Então porque se sentem sempre feridos?» O público tem razão. Por razões que não vou aqui discutir, primitivas e valiosas experiências na minha vida de escritora deram-me um sentido  de perspectiva a respeito dos críticos e comentadores , mas quando surgiu este romance, O Caderno Dourado, perdi-o. Pensei que na maioria dos casos a crítica era demasiado idiota para ser verdadeira. Ao recuperar o equilíbrio, compreendi o problema. Acontece que os escritores procuram nos críticos um alter ego, um outro eu mais inteligente do que o nosso, que entendeu aquilo que pretendíamos e que nos julga apenas por termos ou não atingido o que pretendíamos. Nunca encontrei um escritor que, ao encarar finalmente esse ser raro, o verdadeiro crítico (que ocasionalmente existe), não se liberte de toda a paranóia e não se torne agradecidamente atento... pois encontrou aquilo que pensa que necessita. Mas o que ele, escritor, pede é impossível. Porquê esperar por esse ser extraordinário, o crítico perfeito, por que motivo deverá existir alguém que compreenda o que ele está a tentar fazer? No fim de contas, há uma única pessoa, em particular, a fiar esse casulo, e uma única pessoa cuja obrigação é fiá-lo.
 Não é possível aos recensores literários e críticos fornecerem o que dizem que fornecem... aquilo por que os escritores anseiam de um modo tão ridículo e infantil.
 E isso porque os críticos não foram educados para o fazer e o seu treino leva-os na direcção oposta.
 Tudo principia quando a criança tem cinco ou seis anos e chega à escola. Começa com pontuações, recompensas, «lugares», «correntes», estrelas... e, ainda em muitos sítios, galões . Esta mentalidade de corrida de cavalos, a maneira de pensar do vencedor e do perdedor, leva a: «O escritor X vai ou não vai alguns passos à frente do escritor Y . O escritor Y ficou para trás. No seu último livro, o escritor Z demonstrou ser melhor do que o escritor A.» A criança é treinada para pensar deste modo desde o princípio, sempre em termos de comparação, de êxito e de falhanço. É um sistema de eliminação, o fraco fica desencorajado e desiste. É um sistema destinado a produzir uma minoria de vencedores sempre em competição uns com os outros. Penso - mas este não é o local para desenvolver este assunto - que os talentos que cada criança possui, independentemente do seu quociente de inteligência oficial, poderiam manter-se durante toda a vida, enriquecendo-a a ela e a toda a gente, se esses talentos não fossem encarados como um bem com um valor no mercado do êxito. (...) Como qualquer outro escritor, recebo constantemente cartas de jovens de vários países, mas muito em especial dos Estados Unidos, que se preparam para escrever teses ou ensaios sobre os meus livros. Todos dizem: «Por favor, envie-me uma lista dos artigos sobre o seu trabalho, dos críticos que escreveram a seu respeito, dos especialistas.» Pedem-me também mil pormenores de total irrelevância, mas que foram ensinados a considerar como importantes para formarem um processo, como se trabalhassem num departamento de imigração.
 A esses pedidos respondo como se segue: «Caro estudante, és louco, Para quê passar meses e anos a escrever milhares de palavras acerca de um livro, ou até acerca de um escritor, quando há centenas de livros à espera de serem lidos? Não vês que és a vítima de um sistema pernicioso? E se tu mesmo escolheste o meu trabalho para tema, e se tens mesmo de escrever uma tese - e acredita que me sinto muito grata por saber que consideras útil aquilo que escrevo -, então porque não lês o que escrevi e tiras as tuas próprias conclusões a respeito do que pensas, testando-as com a tua própria vida, a tua própria experiência? Não te rales com o que dizem os professores Fulano e Beltrano.»
 «Caro escritor», respondem-me «mas eu preciso de saber o que os especialistas dizem, porque se não os citar o meu professor não me dará uma boa classificação.»

Doris Lessing, O Caderno Dourado, pp XI, XII, XIII, XIV, Circulo de Leitores. 

Comentários


A mostrar os últimos 20 comentários:

Fatima Silva , 01/07/2020 16:00

Gostaria de adquirir este livro, O caderno dourado, em português, alguém me ajuda? Obrigada s

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