loading gif
Loading...

Poema e Poesia de Vitorino Nemésio

Amor
Vitorino Nemésio

Pedra de Canto

Ainda terás alento e pedra de canto, 
Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira, 
Para cantar em sílabas ásperas o canto, 
De rima em -anto, o pranto, 
O amor, o apego, o sossego, a rima interna 
Das almas calmas, isto e aquilo, o canto 
Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro, 
O estupro de outrora, a triste vida dela, o canto, 
Buraco onde te metes, duplamente: com falo, 
Falas, fá-la chorar e ganir, com falo o canto 
No buraco de grilo onde anoiteces, 
No buraco de falso eremita onde conheces 
Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto 
De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares 
Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia, 
Canteiro porque o falo a julga flores, o canto 
Áspero do canteiro de pedra e sémen que tu és 
(No buraco do falo falaste), 
Tu, falazão de amor, que a amas e conheces. 
Amas a quem? Conheces quem? Pobre Hipocrene, 
Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda, 

Embora isso em sangue dessa pobre alma em ferida: 
A dela, a tua, cadela a tua pura e fiel no canto 
De lama e amor como não há no charco em torno, 
Maravilhoso canto só de soprares na ponta a um corno 
E logo a sílaba e o inferno te obedecem 
E as dores íntimas dela nas tuas falas se conhecem, 
Sua íntima vergonha inconfessada desponta, 
Passiflora penada, pequenina vulva triste 
Em teu sémen sarada e já livre de afronta: 
O canto em pedra e voz, psicóide e bem vibrado, 
Límpido como vidro a altas horas lavado, 
Como o galo de bronze pela dor acordado, 
No amor e na morte alevantado, 
Da trampa mentirosa resgatado, 
Como Dante o lavrou em pedra de Florença 
E Deus to deu de amor por ela no atoleiro? 
Flor menina de orvalho em amor verdadeiro? 

Ainda terás amor e pedra de canto, 
Fé nela e sua dor de arrependida e enganada, 
Ou, enfim, amor a fogo dado e perdão puro... 
Eu quero lá saber! Amor de Deus no canto 
De misericórdia e paz, mesmo para os violentos 
Da violada violeta, a breve miosótis 
Ao canto unida e em tuas lágrimas orvalhada? 
Cala-te e humilha-te como ela, 
Que é maior do que tu no canto 
E a esta hora só bebe talvez água salgada, 
Oh poeta de água doce! 

Mas, antes de calar espada e voz, responde: 
Ainda terás alento e pedra de canto 
Para cantar estas coisas, 
Encantar outra vez a donzela roubada ou nina morta, 
Enfim, o teu amor? 
Dize lá, sem-vergonha, 
Homem singelo: 
Pois se nisto me mentes nunca mais a verás. 

(Quem fala?) 

Em “Obras Completas”

Voltar

Faça o login na sua conta do Portal