Excerto de «Os Miseráveis» - página 310, Publicações Europa-América
Se no mundo há coisa que aterre, se existe uma realidade que exceda as ficções de um sonho, é decerto isto: viver, ver o Sol, estar em plena posse da força viril, ter a saúde e a alegria, rir com desassombro, correr após uma glória que temos diante de nós e nos incita com o seu deslumbramento, sentir no peito um pulmão que respira, um coração que pulsa, uma vontade que raciocina; falar, esperar, pensar, amar; ter mãe, mulher e filhos, possuir a luz, de súbito, em menos de um minuto, em menos tempo do que o necessário para soltar um grito, resvalar num abismo, cair, rolar, esmagar, ser esmagado; ver espigas de trigo, flores, folhas e ramos, sem poder deitar a mão a nada, sem poder cravar as unhas na aresta do precipício, vendo inútil a espada, sentindo por baixo de si o peso dos homens e por cima o dos cavalos, debater-se em vão com os ossos quebrados por algum choque imprevisto nas trevas, sentir um calcanhar que vos deita os olhos fora, morder com raiva as ferraduras dos cavalos, sufocar, uivar, contorcer-se, sentir-se enterrado e dizer: «Ainda há pouco eu era um vivo!»