Crítica Literária por Miguel Real
HOMENAGEM A URBANO TAVARES RODRIGUES. NA PUBLICAÇÃO DO SEU ÚLTIMO ROMANCE: NENHUMA VIDA
2013-12-171 – Introdução
Em 1964, no opúsculo Romance Francês Contemporâneo, Urbano Tavares Rodrigues, constatando o largo leque de tendências animador do romance francês, indica dois grandes vectores culturais que englobariam e sintetizariam a totalidade da produção literária francesa do século XX: romances de tendência “moralista”, como os de A. Gide, Les Faux Monnaayeurs e Les Caves du Vatican, postulando para o leitor uma mensagem de orientação social e existencial, tendo como grandes continuadores A. Malraux, J.-P. Sartre e A. Camus; e Du Coté de Chez Swann, de M. Proust, de 1913, romance de reflexão individualista, epicurista, “uma descida íntima, sem curar de receitas para a salvação da humanidade”1. Verdadeiramente, toda a obra romanesca e ensaística de Urbano Tavares Rodrigues se erige a partir do cruzamento, ou, melhor, da fusão destas duas tendências narrativas detectadas pelo próprio no romance francês contemporâneo.
A primeira tendência, a “moralista”, obedece aos seu ansioso impulso de busca de uma sociedade fraterna e desembocará, na década de 60, na visão marxista e neo-realista da literatura e da crítica literária, com a qual, porém, partilhando “ideias e projectos”, nunca se identificará plenamente, defendo uma estética mais aberta e permanentemente actualizada ao nível formal2; a segunda, relevando da descoberta e exploração do homem individual, “em situação”, fez de Urbano Tavares Rodrigues um dos mais influentes autores e críticos literários cujo quadro de análise se inspira em conceitos derivados do existencialismo francês.
Dito de outro modo, existencialista com preocupações sociais ou neo-realista com preocupações individuais, eis em síntese a visão estética singularíssima de Urbano Tavares Rodrigues, que nunca se reverá nos existencialistas portugueses (Delfim Santos, António Quadros, Vergílio Ferreira, Eduardo Lourenço…), mas também nunca se reverá nos críticos neo-realistas puros (A. Ramos de Almeida, António Vale/Álvaro Cunhal, Álvaro Salema, Mário Sacramento, Fernando Namora…).
Ao longo da década de 50, mormente durante a sua estadia em França (Montpellier, 1949 – 1952; Paris, Sorbonne, 1952 – 1955), o jovem Urbano Tavares Rodrigues construiu a sua mansão crítica pessoal, de fundo eminentemente existencialista, que, posteriormente, após o regresso a Portugal, fundiria com uma fortíssima denúncia ficcional e ensaística do regime político do Estado Novo, aproximando-se, tanto na prática social quanto na teórica, do neo-realismo marxista. Porém, ainda que marxista, e sobretudo, ainda que neo-realista, a visão estética de Urbano Tavares Rodrigues, de pendor “moralista” no que se refere à mensagem social, torna-se profunda e subversivamente “imoralista”, qualquer que seja a ideologia extra-literária do seus livros, por via da exploração da personalidade das suas personagens, da total ausência de dogmatismo filosófico e de pudor verbal no estabelecimento dos diálogos, na descrição dos sentimentos e na caracterização das personagens.
Neste sentido, com a publicação de Eterno Efémero (2005) e Ao Contrário das Ondas (2006), já no século XXI, Urbano Tavares Rodrigues actualiza duas constantes da sua arte de escrita. A primeira, a influência existencialista, nascida na década de 50 ao longo de uma prolongada estadia em França, bem como da reflexão teórica como assistente na Faculdade de Letras de Lisboa, da actividade crítica como director do jornal literário Europa (1957), como tradutor (especialmente de Mito de Sísifo, de A. Camus), como crítico de teatro (Noites de Teatro. I e II, 1960/61PARªENTESIS e da sua actividade como crítico literário. Deste modo, Urbano Tavares Rodrigues evidencia-se, com Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e Augusto Abelaira, um dos primeiros cultores e divulgadores do existencialismo em Portugal. Desde Porta dos Limites (1952PARÊNT, os textos de Urbano Tavares Rodrigues são invariavelmente atravessados pelas problemáticas reflexivas próprias do existencialismo filosófico, de que se destacam o cepticismo face às teorias abstractas dominadoras do sentido da História, a interrogação sobre o sentido da vida, a descoberta do corpo vinculada à libertação da mulher, o relevo posto na acção individual, a responsabilidade pessoal, a culpabilidade face à estagnação social e à pobreza económica, o importantíssimo tema da liberdade, do acaso e do destino, o absoluto nivelamento a todos imposto pela morte, os desencontros individuais, a contradição entre a vida pessoal e os imperativos do todo social, a irrupção dos sentimentos, a ausência de objectivos transcendentes, religiosos, a reproblematização de raiz da História, a fuga à narração de histórias eticamente exemplares, a que a escrita de Urbano Tavares Rodrigues acrescenta a singularíssima descrição da questão da sensualidade e do erotismo.
Em segundo lugar, a partir de finais da década de 50, e sobretudo ao longo da de 60, por via do empenhamento social de Urbano Tavares Rodrigues após a malograda candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República, a expulsão do autor da Faculdade de Letras de Lisboa, a consequente proibição de ensinar e o exílio para o Brasil de seu irmão, Miguel Urbano Rodrigues, acresce à influência existencialista o testemunho de ambientes e perspectivas romanescas neo-realistas, de que Bastardos do Sol (1959) e Os Insubmissos são já expressão. Face às obras de Alves Redol e Soeiro P. Gomes da década de 40 e às de Carlos de Oliveira e de Fernando Namora na de 50, Bastardos do Sol estatui-se como uma nova figuração estética do neo-realismo, acolhendo tanto influências existencialistas como rompendo decisivamente com a moda do “novo romance” de N. Sarraute e M. Butor (Alfredo Maragrido, Artur Portela Filho…).
Porém, é nossa convicção de que o que o tempo futuro vazou em perfeição na sua escrita, combinando harmoniosamente a fruição da vivência do momento com orientação social, não o aprendeu Urbano Tavares Rodrigues nem no Quartier Latin na década de 50 nem nas manifestações reprimidas do 1º de Maio em Lisboa, na década de 60. Verdadeiramente, este duplo modelo estilístico, que se constitui igualmente como duplo modelo de análise literária, pré-existia já em Urbano Tavares Rodrigues antes das suas leituras existencialistas e do seu engajamento neo-realista. Com efeito, Urbano Tavares Rodrigues encontrou este duplo modelo de escrita, com diferente configuração, no autor que mais o influenciou e mais prodigamente estudou: Manuel Teixeira-Gomes3. Logo em 1949, escrevia Urbano Tavares Rodrigues sobre a escrita de Manuel Teixeira-Gomes: “Em constante harmonia o prazer e a beleza (…) são os seus temas essenciais”, acrescentando, e o “desprezo (…) pelos preconceitos [sociais], pelos solenes lugares comuns, pelas composturas reverentes. Compraz-se sempre em salientar o grotesco de certas figuras e situações”4. Assim, revendo histórias (Óscar Lopes e A. José Saraiva) e dicionários (Álvaro Manuel Machado) de literatura, não é impossível que o famoso “erotismo” existencialista de que se compõe os romances de Urbano Tavares Rodrigues possua a sua mais arcaica fonte no individualismo erótico de M. Teixeira-Gomes; do mesmo modo, o fundo cuidado social do autor, muito anterior ao seu empenhamento neo-realista, datará porventura das leituras das novelas e contos de Teixeira-Gomes, tenso sido já realçado em 1954 em Présentation de Castro Alves. Neste sentido, é de destacar a hipótese (nova) de que o existencialismo parisiense da década de 50 e o neo-realismo militante da de 60 apenas tivessem avivado na escrita de Urbano Tavares Rodrigues o que seminalmente lhe era já próprio, a interrogação sobre o corpo e a beleza, a fruição angustiante da liberdade individual, a consciencialização do absurdo da existência face à inevitabilidade igualizante e nadificante da morte, temas bem caros, sob um léxico decadentista e expressionista, de fundo psicologista, a M. Teixeira-Gomes. Deste modo, é forçoso reverter, nas histórias e dicionários de literatura portuguesa, a consequência em causa ou motivação, ou, dito de outro modo, se Urbano Tavares Rodrigues não tivesse ido para França e neste país não reinasse a doutrina existencialista, porventura os romances e a crítica literária deste autor não teriam sido no essencial alterados, permanecendo idêntica tematização relativa ao indivíduo, à sua liberdade, aos seus desejos e aos seus labirintos psicológicos e filosóficos, e o idêntico cuidado com a sua alentejana sede de justiça social. Neste sentido, classificar a escrita de Urbano Tavares Rodrigues de existencialista e neo-realista é usar uma terminologia que, verdadeira e conveniente à história e aos dicionários de literatura, retrata com fidelidade os dois traços fundamentais da sua obra desde que se não pretenda, como por ignorância é habitual, retirar a Urbano Tavares Rodrigues o brilho e a mestria pessoais, considerando a sua obra como mera aplicadora de uma cartilha filosófica e estética. E de todo não é correcto, evidenciando o desconhecimento da génese da obra de Urbano Tavares Rodrigues, classificar esta como expressão de um “ecletismo estético, de estilo e de gosto”5, já que o ecletismo significa indistinção estética de estilo, fusão de múltiplas e indiferenciadas influências, enquanto que toda a escrita de Urbano Tavares Rodrigues, como romancista e crítico literário, submete-se ao duplo crivo de expressão do desejo e da finitude situacional do homem individual consubstanciados na sua liberdade histórica.
2 – Década de 50
Predomina em Urbano Tavares Rodrigues desta década um fortíssimo vínculo ao complexo de ideias francesas entre as duas guerras mundiais focalizado em torno dos grandes temas do absurdo, do encontro/desencontro da vida, da irrisão, da morte, da singularidade individual da existência humana, da revolta, dos limites desta e do seu sentido, do prazer dos sentidos e do seu esgotamento, da necessidade de densificação e dramatização de cada instante da vida (gerando nos seus contos e romances uma nova modalidade de tempo, o tempo concentrado de uma hora ou de uma noite), de angústia da escolha e da responsabilidade universal de cada acto praticado, elevando-o a um plano moral, da necessidade de subversão contínua das estruturas cristalizadas da sociedade, como se se vivesse em revolução permanente, da assunção do erotismo como remissão momentânea do sacrifício culpabilizante da existência normalizada, enfim, o conjunto de temas que solidificavam a visão existencialista do homem, especialmente a retirada das obras de J.-P. Sartre e de A. Camus. Vivendo em França metade da década de 50, constitui-se como normal a influência existencialista no jovem Urbano Tavares Rodrigues, expressa desde logo nas temáticas dos contos da sua primeira obra ficcional, A Porta dos Limites (1952), bem como na escolha dos temas de dois dos seus primeiros ensaios: a morte, em O Tema da Morte na Moderna Poesia Portuguesa6, e o erotismo, em O Mito de Don Juan e o Don Juanismo em Portugal7, verdadeiramente o grande ensaio crítico original sobre o Don Juanismo na literatura portuguesa, inclinando o autor a sua interpretação para uma versão existencialista de Don Juan, versão, aliás, compartilhada por Joaquim Benite na encenação de D. Juan, de Molière (Companhia de Teatro de Almada, 2006). A visão existencialista da crítica literária de Urbano Tavares Rodrigues culmina, em 1960, com a publicação da sua tradução de O Mito de Sísifo8, de Albert Camus, um dos ensaios que, em francês, e, depois, em português, maior influência filosófica terá exercido sobre a geração literária portuguesa da década de 50. Com efeito, esta geração de prosadores, eminentemente lisboeta (em Coimbra pontificava o nascimento de um “novo” – e derradeiro - neo-realismo sob a pena de Carlos de Oliveira: Uma Abelha na Chuva é de 1953; no Porto reinava Agustina Bessa-Luís: Sibila é de 1954), nascida para a literatura na década de 50, integra autores como Urbano Tavares Rodrigues, Luís Francisco Rebelo, Faure da Rosa, Fernanda Botelho, Augusto Abelaira, David Mourão-Ferreira, Coimbra Martins, Vergílio Ferreira pós-Mudança, e Isabel da Nóbrega. Irmana-se esta geração em valorizar estilisticamente a literatura, sem o abandono da denúncia da injustiça económica e social prevalecente ao longo da ditadura política do Estado Novo. Em síntese, todos estes autores transportavam para os seus livros um combate contra três “muros” ideológicos (Le Mur é o título de uma então famosa peça de teatro de Sartre, traduzida por Coimbra Martins): esteticamente, combatiam contra o legado neo-realista puro e duro, centrado na revista Vértice, e contra a herança “psicologista” da presença do ideal da arte pela arte, desprovido de directo alcance social; social e politicamente, lutavam contra o enquistamento institucional de Portugal, sustentado numa ditadura com mais de duas décadas, que separava o país do progresso europeu pós-Segunda Guerra Mundial.
Vazia de passado, esta geração encontrara nos temas da filosofia existencialista a inspiração ideológico-literária suficiente para prestar coesão ao conteúdo dos seus livros. O cepticismo face às teorias abstractas dominadoras do sentido da História, a interrogação sobre o sentido da vida, a descoberta do corpo vinculada à libertação da mulher, o relevo posto na acção individual, a responsabilidade pessoal, a culpabilidade face à estagnação social e à pobreza económica, o importantíssimo tema da liberdade, do acaso e do destino, o absoluto nivelamento a todos imposto pela morte, os desencontros individuais, a contradição entre a vida pessoal e os imperativos do todo social, a irrupção dos sentimentos, a ausência de objectivos transcendentes, religiosos, a reproblematização de raiz da História, a fuga à narração de histórias eticamente exemplares – constituem um conjunto de laços que, na sua unidade narrativa, longinquamente inspirada nos romances de Camus, Sartre e Malraux, perfazem o conteúdo ideológico dos romances desta geração, cujos diálogos testemunham encontros que são desencontros, equilíbrios tensos que são reais desequilíbrios, recalcamentos que são aspirações socialmente frustradas, evidenciando uma sociedade que, sob uma aparência calma e ordenada, é, na essência, profundamente neurótica.
Isabel da Nóbrega, Fernanda Botelho, Urbano Tavares Rodrigues, David Mourão-Ferreira, Augusto Abelaira possuem esse espantoso poder narrativo de retratar suave e ondulante o real (as reuniões, os serões, os jantares, os encontros acidentais), deixando o leitor suspeitar uma subrealidade fervente e conflituante, social e moralmente escondida.
O historiador da literatura João Camilo é autor de um artigo cujo título, na sua idealidade, constitui o suco mais puro dos ideais existencialistas contidos nos romances desta “geração de 50”. Citamo-lo porque somos incapazes de encontrar expressão mais verdadeira e mais bela para designar o imenso conjunto de peças de teatro e romances publicados ao longo desta década por autores influenciados pela atmosfera social existencialista francesa (a alemã teve fortes repercussões na filosofia – Delfim Santos, António José Brandão, Cabral de Moncada…): “plenitudes breves e absolutos adiados”. Com efeito, a exaltação da vivência do momento e a entrega empenhada na plenitude do instante são sempre desacompanhadas da existência de um sentido unificador que congrace heroicamente as vidas das personagens (o neo-realismo) ou revele, por um ideal estético sagrado, o sentido profundo da vida (o presencismo). Diferentemente, as personagens dos textos de Urbano Tavares Rodrigues das décadas de 50 e 60 são seres tão mais intensos de vida quanto nelas a verdadeira vida pulsa ausente, acontecida algures, e, mesmo, em algumas delas (algumas das personagens femininas), em nenhures, de vida reduzida à “vidinha” e ao cumprimento ordenado dos preconceitos sociais.
A “Geração de 50”, encravada entre as gerações literárias épicas das décadas de 30 e 40 e a geração desconstrutivista da década de 60, anunciada por Rumor Branco, de Almeida Faria, Pregos na Erva, de Maria Gabriela Llansol, livros de 1962, e Os Passos em Volta, de 1963, de Herberto Hélder, pressionada pela emergência do “nouveau roman” francês de Alfredo Margarido e Artur Portela Filho, legou para a História da Literatura três grandes escritores – Vergílio Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues e Augusto Abelaira – e uma obra imortal – Aparição, de 1959. Sem a grandeza deste romance, Viver com os Outros, de Isabel da Nóbrega, Calendário Privado, de Fernanda Botelho, ou dos contos de A Noite Roxa e Vida Perigosa, de Urbano Tavares Rodrigues, constituem, no entanto, óptimas súmulas da prática estética alimentada pelos ideias existencialistas de uma das gerações que mais fortemente marcou a literatura portuguesa do século XX.
Porém, nesta década de 50, evidenciando a unidade estilística da sua escrita, para além dos ensaios e dos contos, o olhar sensual e a preocupação social que desde sempre alimentavam a escrita de Urbano Tavares Rodrigues exprimem-se também, e fortemente, nos relatos e crónicas de viagens, como a que fez a Santiago de Compostela9.
Maria Graciete Besse, em livro dedicado à vertente ficcional de Urbano Tavares Rodrigues, regista que na escrita deste autor “articulam-se variados percursos que correspondem a modulações do confronto do escritor consigo mesmo e com o mundo, traduzindo a experiência agónica de uma época e a indefectível crença num humanismo restaurador da esperança”10. Com efeito, nota-se na obra ensaística e romancista deste período de Urbano Tavares Rodrigues a primeira característica (“a experiência agónica de uma época”) e menos a segunda (“a crença num humanismo restaurador da esperança”), que fará o seu fortíssimo aparecimento na década de 60. Neste sentido, a década de 50 terá sido, se não nos enganamos, para o ensaísta e crítico Urbano Tavares Rodrigues a década da superação existencial de um nacionalismo limitado, gloriosamente louvado pelo regime do Estado Novo, e a abertura a e convívio com problemáticas literárias e filosóficas que só em segunda mão lhe poderiam ter chegado a Portugal. Não nos admiramos, assim, que, no regresso a Portugal, o jornal literário dirigido por Urbano Tavares Rodrigues se intitule Europa.
Regressado a Portugal, a actividade crítica de Urbano Tavares Rodrigues, para além do seu múnus pedagógico na Faculdade de Letras de Lisboa como professor do Curso de Língua e Cultura Portuguesa para estrangeiros e, posteriormente, como assistente de Vitorino Nemésio, faz-se sentir fortemente na crítica teatral, tentando detectar esteticamente seja “o drama do homem perante a existência” (o existencialismo), seja o “drama do homem perante as circunstâncias, ou a sua situação” (o realismo)11, bem como na sua actividade editorial de apresentador e prefaciador de traduções de peças de teatro vinculadas ao “teatro do absurdo”12.
3 – Década de 60
Em Realismo. Arte de Vanguarda e Nova Cultura, de 1966, escreve Urbano Tavares Rodrigues que “só um realismo vesgo – e não aquele que desejamos, o de uma nova cultura, de base dialéctica, mas amplamente aberto à experiência e animado por uma ânsia permanente de progresso formal e convívio estético – enjeitaria o muito que há de válido no Existencialismo, encarado no seu contexto histórico: a sua moral de acção, a apresentação – camuseana ou sartreana – do homem em situação, a negação da essência (resultante dos actos, do seu «existir»”13. Com efeito, este parágrafo condensa a visão crítica e a prática literária de Urbano Tavares Rodrigues, ressaltando que ao longo da década de 60, seja nos seus ensaios, seja nos seus romances, o autor atinge um equilíbrio estético harmonioso entre a vivência de uma “situação” existencial e um horizonte realista social de timbre dialéctico. No “Prefácio” à segunda edição, publicada doze anos depois, Urbano Tavares Rodrigues confessa permanecer de acordo com aquelas palavras de 1966, reafirmando crer numa “arte livre e revolucionária [o conteúdo] e uma narratologia nova [a forma], mais conforme com as coordenadas deste segundo meio século (avanços da cibernética, modificações das relações humanas em função da tecnologia eléctrica e da caducidade cíclica de estatutos sócio-morais (…)”14. Porém, Urbano Tavares Rodrigues assinala igualmente que “teria hoje [1978] de reforçar aqui e além a minha perspectiva socialista da vida e do futuro, sem prejuízo do compromisso com o real e com a palavra, matéria soberana do discurso literário, veículo do universo representado”15. Eis aqui, em síntese escrita pelo próprio, a grande diferença entre o Urbano Tavares Rodrigues da década de 60 e o da de 70: o primeiro harmoniza temas existencialistas com temas neo-realistas; o segundo, extinta a censura política em Portugal e realizada a revolução do 25 de Abril de 1974, assume ostensivamente uma escrita figurativamente socialista, dando predominância a uma leitura da história fundada na luta de classes. Neste sentido, Urbano Tavares Rodrigues, distingue criteriosamente o existencialismo, no qual recusa ver uma “apologia, involuntária ou desviada do capitalismo”16, de “nouveau roman”, de M. Butor e N. Sarraute, cuja escrita considera derivar de um mero “virtuosismo técnico”17, expressão de uma vanguarda que teria arrastado o romance para um impasse dilemático entre o mais directo objectalismo e a assunção labiríntica do “eu”. Neste sentido, Urbano Tavares Rodrigues propõe (em 1966, reafirmado em 1978) uma “nova cultura como síntese de uma nova consciência estética e de uma concepção socialista do mundo e do futuro. Refiro-me a uma arte com historicidade, a um amplo neo-realismo (se quisermos ater-nos a este rótulo) que tenha superado a vã polémica com a chamada vanguarda”, tendo como base principal “a liberdade de criação”18. Urbano Tavares Rodrigues busca, assim, uma “renovação no círculo do realismo dialéctico”19: “a corajosa assunção [na teoria narrativa] de todas as dificuldades e de todas as liberdades”20. É neste sentido, no sentido de um realismo narrativamente ilimitado, na abertura a um novo horizonte estético permanentemente enriquecido pelos avanços sociais, científicos e técnicos, que Urbano Tavares Rodrigues encara a corrente neo-realista do romance português, intentando revigorá-la a partir de meados da década de 60, não hesitando em distingui-la do “realismo socialista”21, integrando nela ou nas suas margens autores como Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro, Manuel Mendes e Assis Esperança, mas também, mais recentes, como Fernanda Botelho, Augusto Abelaira, Almeida Faria… Com efeito, após as teorizações de Mário Sacramento e Alexandre Pinheiro Torres, Urbano Tavares Rodrigues evidencia-se, enquanto crítico literário, como o historiógrafo e o teórico que o neo-realismo necessitava, actualizando-se e abrindo-se a um diálogo plural com as diversas vanguardas e/ou gerações chegadas à literatura após o final dos anos 50.
Em 1969, Urbano Tavares Rodrigues publica Escritos Temporais22, onde, em transcrição de uma entrevista, sublinha que “toda a literatura de resistência tomou em dado momento o nome genérico, e por vezes abusivo, de neo-realismo, abrangendo um nítido romantismo protestatário, ainda perto, no romance, dos métodos naturalistas da investigação tipológica, e um verdadeiro realismo dialéctico, selectivo, demonstrativo e futurante, assente no conhecimento das contradições sociais e no propósito de fazer o inventário do homem português em conexão com os seus diversos extractos geo-económicos”23 Mais à frente, mantendo-se dono de um espírito comprometido politicamente mas literariamente livre, seu timbre próprio no seio da história da crítica literária e da literatura, Urbano Tavares Rodrigues faz conjugar o empenhamento militante neo-realista de denúncia da exploração económica (conteúdo dos seus textos narrativos) com “a vontade de acertar o passo com as exigências artísticas [a forma], que são, afinal, respostas às novas concepções de espaço e tempo, em suma, à era da velocidade, da técnica, da cisão figural na pintura, etc.”24.
Face a esta posição estética revelada por Urbano Tavares Rodrigues, não causa espanto que releve nos seus romances vertentes existenciais, aparentemente exteriores às problemáticas de empenhamento político. Com efeito, em Urbano Tavares Rodrigues o neo-realismo supera o véu de pudor da habitual e histórica mentalidade moralista comunista sobre a figuração do corpo, bem expresso nos textos de Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes e Manuel Tiago, abrindo-se sem vergonhas nem tabus à realidade do sexo e do erotismo, isto é, do desejo, para utilizar uma palavra cara à interpretação do crítico Urbano Tavares Rodrigues relativamente ao discurso literário de Manuel Teixeira-Gomes, que o autor não hesita em designar por “mestre”25. Do mesmo modo, no que se relaciona com a forma estrutural das suas narrativas romanescas, Urbano Tavares Rodrigues abre-se sem tabus ao experimentalismo vanguardista que cada novo romance seu traz, e que, por todos, sirva como exemplo, na década de 60, Imitação da Felicidade (1966). Neste sentido, não nos admiramos que Urbano Tavares Rodrigues seja igualmente o tradutor de textos26 e de livros27 de G. Bocaccio, ao mesmo tempo que denuncia o racismo presente na sociedade americana28.
4 – Década de 70
Como assinalámos, a década de 70 radicaliza Urbano Tavares Rodrigues. A decadência do regime político do Estado Novo, com mais de 40 anos de existência, a Guerra Colonial, uma repressão ditatorial acéfala, a prisão do próprio Urbano em 196329 e o espancamento a que foi submetido em 1969, a emigração para a Europa de quase um milhão de portugueses pobres, a Revolução dos Cravos, contribuíram para a radicalização da sociedade portuguesa em duas grandes forças políticas contraditórias, e a escrita de Urbano Tavares Rodrigues do mesmo se sentiu, denotando um militante empenho cívico tendo como horizonte a instauração de uma sociedade socialista. Porém, se esta radicalização se faz sentir fortemente nos seus textos ficcionais (recorde-se Dissolução, 1974; Viamorlência; 1976; As Pombas são Vermelhas, 1977…), Urbano Tavares Rodrigues manteve sempre nos textos de crítica literária uma infinita abertura a outras visões e práticas estéticas, como, por exemplo, o deslumbramento que confessa ter sentido quando leu pela primeira vez, em Paris, em 1976, o livro de R. Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso30. Assim, a radicalização de Urbano Tavares Rodrigues ao nível do ensaio crítico reside menos numa denegação de autores ou na ausência de referência a obras não coniventes com o horizonte político socialista, menos ainda na crítica sectária destas, mas, mais, na redução de toda a literatura portuguesa do século XX à história política, como acontece, por exemplo, no texto “A Literatura Portuguesa e a Realidade Social”31, ou na designação sui generis do escritor como “trabalhador da palavra”32. Porém, Ensaios do Após-Abril revelam um Urbano Tavares Rodrigues crítico da teoria literária de Roland Barthes, autor que confundiria a crise da história total com a “agonia cultural do Ocidente e particularmente da elite francesa (…) divorciada das camadas proletárias, umbilicalmente ligada à Europa rica e egoísta do Euromercado”33.
Para Urbano Tavares Rodrigues, todo o esforço do escritor assenta na luta contra a linguagem, de que o “formalismo”34, que contém uma “atitude reaccionária”, e a escrita “de receita” se constituem como modelos formais do passado. A atitude correcta assentaria numa literatura animada de um fulgor futurante, ao nível do conteúdo, necessariamente de pendor socialista e igualitário, mas formalmente enriquecida por novas combinações semânticas e linguísticas, propícias à festa estética da leitura e da escrita literárias, unindo harmoniosamente, no dizer do autor, “comunicação” e “transgressão”35, ou seja, uma escrita assente na transgressão de conteúdo sociais, o que separa definitivamente Urbano Tavares Rodrigues, como crítico literário e como escritor, do uso de técnicas meramente laboratoriais de escrita36.
Falhado o sentido socialista da Revolução dos Cravos, as décadas de 80 e 90 ressuscitaram na escrita do autor a antiga harmonia romanesca entre a descrição da situação existencial e a narração da intriga social, avivadas agora, de um modo muito contundente, por um efeito de denúncia. Escrever tornou-se, para UTR, tanto um acto de denúncia das novas mazelas do capitalismo quanto de resistência ao canto de sereia dos seus ideólogos. É justamente este, parece-nos, o estatuto de Eterno Efémero (2005) e de Ao Contrário das Ondas (2006), o primeiro evidenciando a vertente individualista (neo-liberal) do delírio do desejo e o segundo a denúncia das ideias (neo-liberais) cristalizadas no poder do Estado, não raro prosseguidas com forte entusiasmo, em Portugal, por antigos militantes da extrema-esquerda, actualmente os mais entusiasmados neófitos capatazes do neo-liberalismo.
1 Urbano Tavares Rodrigues, Romance Francês Contemporâneo, Lisboa, Sociedade Portuguesa de Autores, 1964, p. 5.
2 AA. VV., Urbano Tavares Rodrigues. 50 Anos de Vida Literária, Porto, Asa, 1994, p. 5.
3 Cf. Urbano Tavares Rodrigues, o texto Vida Romanesca de Teixeira Gomes, publicado na década de 40 e não mencionado pelo próprio na sua bibliografia oficial, mas também a sua tese de licenciatura, Manuel Teixeira Gomes. Introdução ao estudo da sua Obra, Lisboa, Portugália Editora, 1950; Teixeira-Gomes e a reacção antinaturalista, Lisboa, Casa do Algarve, 1959, bem como a sua tese de doutoramento, Teixeira-Gomes e o Discurso do Desejo, Lisboa, Edições 70, 1983.
4 Urbano Tavares Rodrigues, Manuel Teixeira Gomes. Introdução ao estudo da sua Obra, ed. cit. p. 37.
5 Manuel de Gusmão, “Para um retrato de Urbano Tavares Rodrigues”, in Avante, 14/11/02, apud AA. VV. Urbano Tavares Rodrigues. 50 Anos de Vida Literária, ed. cit, p. 49.
6 Cf. Urbano Tavares Rodrigues, O Tema da Morte na Moderna Poesia Portuguesa, Lisboa, sep. de Graal, nº 4, 1957.
7 Cf. Urbano Tavares Rodrigues, O Mito de Don Juan e o Don Juanismo em Portugal, Lisboa, Ática, 1960.
8 A. Camus, O Mito de Sísifo, (trad. de Urbano Tavares Rodrigues), Lisboa, Livros do Brasil, 1960.
9 Cf. Urbano Tavares Rodrigues, Santiago de Compostela, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1949.
10 Maria Graciete Besse, Discursos de Amor e Morte. A Ficção de Urbano Tavares Rodrigues, Porto, Campo das Letras, 2000, p. 105.
11 Urbano Tavares Rodrigues, Noites de Teatro, I, Lisboa, Ática, 1961, p. 13.
12 Cf. Urbano Tavares Rodrigues, “Prefácio” a O Teatro de Eugène Ionesco, trad. Luís de Lima, Lisboa, Minotauro, 1962; “Prefácio” a A. Artaud, O Teatro e o seu Duplo, trad. Fiama Hasse Pais Brandão, Lisboa, Minotauro, 1962; cf. igualmente “Prefácio” à peça de teatro de Fiama Hasse Pais Brandão, Os Chapéus-de-chuva, Lisboa, Minotauro, 1962.
13 Urbano Tavares Rodrigues, Realismo. Arte de Vanguarda e Nova Cultura, Porto, Editora Nova Crítica, 1978 [1ª ed.: 1966], pp. 24 – 25.
14 Idem, ibidem, pp. 9 – 10.
15 Idem, ibidem, p. 10.
16 Idem, ibidem, p. 31.
17 Idem, ibidem, p. 32.
18 Idem, ibidem, p. 46.
19 Idem, ibidem, p. 47.
20 Idem, ibidem, p. 53.
21 Urbano Tavares Rodrigues, Um Novo Olhar sobre o Neo-Realismo, Lisboa, Morais Editores, 1981, p. 14.
22 Escritos Temporais foi posteriormente integrado no livro de Urbano Tavares Rodrigues, O Gosto de Ler. Ensaios, Porto, Editora Nova Crítica, 1980.
23 Idem, ibidem, p. 142.
24 Idem, ibidem, p. 143.
25 Idem, ibidem, p. 146.
26 G. Bocaccio, Histórias Eróticas, trad. de Urbano Tavares Rodrigues, Porto, Inova, 1972.
27 G. Bocaccio, Decameron, trad. Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa, Círculo de Leitores, 1972.
28 Urbano Tavares Rodrigues, “Apresentação”, AA. VV., O Problema Racial nos Estados Unidos da América visto por Portugueses, Lisboa, Estampa, 1968.
29 Cf. Urbano Tavares Rodrigues, Diário de Ausência. Textos de Presença Activa, Lisboa, Bertrand, 1975.
30 Cf. Urbano Tavares Rodrigues, Ensaios de Escreviver, Coimbra, Centelha, 19782, pp. 289 – 290.
31 Cf. Urbano Tavares Rodrigues, “A Literatura Portuguesa e a Realidade Social”, in Palavras de Combate, Lisboa, Seara Nova, 1975, pp. 73 – 78.
32 Idem, ibidem, pp. 79 - 80.
33 Urbano Tavares Rodrigues, Ensaios do Após-Abril, Lisboa, Morais Editores, 1977, p. 13.
34 Idem, ibidem, p. 14.
35 Idem, ibidem.
36 Para uma actualização da obra do autor como crítico literário nas décadas de 80 e 90, cf. Urbano Tavares Rodrigues, Tradição e Ruptura: Ensaios, Lisboa, Ed. Presença, 1994, e O Texto sobre o Texto, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001.
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