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Raízes - Ana Cristina Silva


Em nome de um Deus

2016-11-18 00:00:00

 

Em nome de um Deus que nunca ninguém ouviu ordenar a morte

Desde que a minha mulher morreu deixei de dormir. Como quase todas as noites andei às voltas na cama até que me levantei e acendi a televisão. Estava à espera de encontrar um daqueles programas tardios e intermináveis sobre futebol, mas a notícia estava em todos os canais. Pela primeira vez em meses, fui absorvido pelas imagens: tinha acontecido um atentado terrorista em Paris. Um homem fizera-se explodir junto à porta do estádio de França onde decorria um jogo entre França e a Alemanha e, um pouco mais tarde, numa outra porta do estádio, um outro tinha imitado o primeiro. E como se seguissem um ritual sincronizado que não apenas representasse a submissão à vontade de Alá, mas que também a realizasse, vários homens haviam disparado tiros de metralhadora contra os clientes de bares e de restaurantes em diferentes pontos da cidade enquanto outros usaram armas de guerras contra a assistência de um concerto numa casa de espectáculos. Os incidentes tinham ocorrido há cerca de duas horas. O número de vítimas não parava de aumentar e, segundo as legendas que passavam em rodapé, o estado islâmico já reivindicara o atentado.

O mundo voltava para mim da pior maneira. As imagens sucediam-se e repetiam-se sem muita coerência ou então era eu que ainda não as conseguia conjugar numa sequência. Uma multidão descia em pânico as escadarias do estádio para o relvado e, quando as câmaras se aproximavam, nos olhos das pessoas via-se um medo que nada tinha a ver com os receios normais do quotidiano, olhos assustados que imaginavam uma morte sumária e imprevisível. As batidas descompassadas dos seus corações não eram captadas pelas câmaras, apenas elas as sentiam evidentemente, mas adivinhava-se o terror pela sua correria até ao campo de futebol. Não se via sangue em lado nenhum, mas o horror envolvia cada uma daquelas pessoas num círculo letal e devia perpassar nas suas palavras quando, já no relvado, eram exibidas imagens com elas a telefonar à família.

As sombras tinham-se juntado sobre os prédios de Paris. Em outros pontos de reportagem mostravam-se vultos envoltos na escuridão que só os pirilampos de inúmeras ambulâncias e dos carros de polícia iluminavam. E o rugido das sirenes sobrepunha-se a todos os outros ruídos, gemiam tão alto que a voz do jornalista mal se ouvia. Às vezes as câmaras aproximavam-se e viam-se operacionais de unidades anti-terroristas armados até aos dentes ou pessoas a fugir pelas traseiras da casa de espectáculos, o Bataclán. Imagens pouco nítidas, apenas vislumbres do terror que tomara conta da cidade. Outras vezes mostravam-se montras estilhaçadas de restaurantes e pediam-se depoimentos às testemunhas dos tiroteios que não conseguiam fazer outra coisa senão soluçar, porque todas as suas emoções se tinham afastado do território das palavras. Algumas ainda tentavam ligar com frágeis fios as frases e, sem conseguir extrair um sentido ao que tinham assistido, falavam mais para elas próprias do para o jornalista, como se tentassem convencer-se da irrealidade do que haviam testemunhado.

Durante meses tinha lutado contra a doença ao lado da minha mulher e também eu não compreendia como é que aqueles homens armados haviam aparecido a meio da noite investidos na tarefa de disseminar a morte. Essa era a minha maior perplexidade, mas a mesma não parecia atormentar os comentadores que opinavam, tendo como cenário a repetição das mesmas imagens. Aqueles homens dos atentados, como tantos outros antes deles, não se importavam que, na origem da sua força, estivesse um mandamento criminoso. Pelo contrário, precisavam dessas mortes para seguir adiante até ao seu paraíso, matando como se esse fosse o acto primordial do verdadeiro crente. O martírio em nome da fé atravessara os séculos e, não distinguindo religiões, sacrificara milhões de vidas. Cristãos contra os seus infiéis, muçulmanos contra os seus infiéis cristãos, judeus atacados por todos os outros, assim se descreviam os motivos de tantas guerras e se contava muito da história do mal. A minha primeira obrigação enquanto escritor era tentar compreender, explorar quem eram aqueles homens que se ofereciam para operações de martírio, fazendo da mortandade uma forma de exaltação. Não pretendia justificá-los e ainda menos desculpá-los, mas entender como na história da humanidade se tinha matado tantas vezes pela vontade de um Deus que nunca ninguém ouvira de viva voz ordenar a morte. Pela primeira vez, desde que Sofia morrera, senti que tinha vontade de voltar a escrever, não por causa dela, mas para iluminar através de uma narrativa as características morais desses homens que matavam ou mandavam matar em nome de um Deus qualquer que fora adorado ao longo dos séculos pela sua misericórdia. Sim, era meu dever enquanto escritor revelar a complexidade de um ódio gerado a partir das religiões. Mas também podia ser que a religião tivesse sido em muitas ocasiões o instrumento de sádicos, assassinos ou mesmo de loucos. E ainda, noutros casos, o pretexto para se exercerem represálias contra um inimigo pessoal ou para se fazer uma guerra de conquista de novas terras. Só através da literatura conseguiria revelar a diversidade dos motivos daqueles assassinos de Paris e de tantos os outros que ao longo da história os antecederam. Não, definitivamente, não compreendia essa crença que permitira que durante séculos homens aniquilassem com a mesma obstinada ferocidade outros homens. E muito menos entendia a sua certeza de que Deus ou Alá, na sua monstruosa bondade, permitissem esses assassinatos. A televisão mostrava na altura imagens de alguns dos sobreviventes, rodeados por polícias e embrulhados em mantas de pratas, a sair do Bataclán. Sabia que aquelas pessoas continuariam a sentir medo para o resto das suas vidas, e essas horas de terror, enfim capturadas pelas câmaras, ficariam suspensas no seu rosto para toda a eternidade.

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