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Raízes - Miguel Real


A pitonisa de Delfos

2017-09-04 00:00:00

 

 

Sancha tratou de tudo, quer dizer, eu nada fiz, até desconhecia que no dia seguinte, de manhãzinha, partiria para Atenas. Disse-mo na noite anterior. Entrou-me pelo quarto sem bater e avisou-me que fizesse uma mala, partiríamos às cinco para o aeroporto. Fiquei aflito, corri a confirmar a data de validade do passaporte na bolsa dos documentos oficiais, tive sorte, tinha ido a Cabo Verde no último ano do secundário, ilha do Sal, viagem de finalistas, o passaporte ainda estava válido. Sancha sorriu, basta-te o cartão de cidadão, ó palerma, és mesmo um nabo.

Aterrámos em Atenas sob uma chuva diluviana. Depusemos as nossas malas no hotel e, surpreso, reparei que Sancha reservara um quarto, um único. Saímos a correr do hotel, eu arrastado por Sancha, que poucas ou nenhumas explicações me dava, e entrámos num Mercedes S 400 preto, rutilante, com um motorista que só falava grego. A seu lado uma guia, de vaga origem espanhola, falou em avós ou bisavós fugidos de Franco e acolhidos em Tessalónica pelo Partido Comunista Grego, pedia para a tratarmos por Tina. Tudo era surpresa para mim. O carro acelerou em direcção aos montes Parnaso, território do santuário de Delfos, objectivo da visita de Sancha.

Tina dava-nos os pormenores do santuário desde a época micénica. O templo de Delfos era devotado simultaneamente a dois deuses, durante nove meses do ano a Apolo, o deus da claridade, da inteligência, da beleza masculina, deus do sol, da luz, da verdade racional, inspirador dos sons harmoniosos da lira, nos restantes meses Apolo abandonava o santuário e concedia o domínio deste a Dionísio, o deus do vinho e da vinha, do transe místico, da vida alegre e feliz, dos prazeres inebriantes do corpo, dos êxtases e do seu prazer deleitoso, um deus anterior ao panteão do Olimpo, proveniente da vida bárbara e primitiva da Trácia, Tina ilustrava, a actual Bulgária.

Tina, sentada à frente no carro, de pescoço torcido para nós, gordinha mas de dorso ágil, guia profissional, narrava-nos a história antiga do seu país como se contasse histórias de embalar a crianças. Alegava que Apolo e Dionísio, como patronos do templo, constituíam a síntese perfeita da personalidade humana – 75 % de razão, 25 % de emoção, 2/3 de vida moderada e prudente, 1/3 de vida alvoroçada e apaixonada. Só assim o homem seria feliz, concluiu, sensata. Sancha sorria com prazer, para si, se pudesse, a proporção seria a inversa – mais emoção, menos razão, mais corpo livre, menos corpo controlado. Sancha protestava contra o cristianismo, cujo crime maior, dizia-o com um esgar de repugnância na cara, foi justamente o de querer anular os 25 %, considerando pecado, digno de castigo eterno, tudo o que se relacionava com o prazer do corpo. Bati-lhe com o cotovelo no braço para que se calasse, e, sem querer, devido a uma curva mais apertada, a ponta do cotovelo prolongou-se até aos seus seios. Sancha, descarada, sussurrou-me se eu não podia esperar por logo à noite, o que me deixou boquiaberto, eu só queria avisá-la de que Tina ostentava um belíssimo crucifixo de ouro ao peito, porém com três travessões, um para Cristo encostar a cabeça, outro, o maior, para os braços, outro, ainda, mais curto e pequeno, para os pés, Cristo não teria os pés um sobre o outro, flagelados por um cravo único, mas dispostos lado a lado, Tina era, evidentemente, fiel da igreja Ortodoxa, não perceberia a acusação de Sancha ao cristianismo, não poderia.

Tínhamos chegado a Delfos, duas horas extenuantes de viagem, Tina papagueava histórias e lendas como uma máquina falante. Mal saímos do carro, agradeci a Apolo o dinheiro dos pais de Sancha, que tinha permitido o aluguer do Mercedes com ar condicionado. O calor torrava as cabeças e eu, desprevenido dos planos de Sancha, não tinha levado chapéu ou boné.

Tina falava, falava, falava, Apolo errara pelo mundo micénico, a Hélade arcaica, dos heróis troianos e da formação do areópago dos deuses clássicos, a Grécia de Homero e Hesíodo, explicava a descendente de bascos, ali desembarcara o deus, a nossos pés, numa baía serena, que acolhia o remate de um vale pedregoso e caótico, montanhas rochosas abruptas, encostas perigosamente alcantiladas, fragas e escarpas do princípio do mundo. Território singular de mãe Geia, onde cultivava a mais perigosa das pitons, meio serpente, meio dragão. Apolo invejou aquele vale escarpado, um caos de pedras amalgamadas, levantado sob abismos rochosos. Quis dele fazer a sua casa, matou a piton, atraiu marinheiros viajantes para primeiros sacerdotes e levantou o primeiro templo apolíneo da Grécia a meio do declive montanhoso, num planalto fruto do esguio equilíbrio entre a montanha e o vale. Ambicionava que o humano, chegado ao santuário, vindo a pé ou de barco, só pudesse avistá-lo de baixo e se atemorizasse, se abismasse, que o ensombramento do medo e o maravilhamento do espanto constituíssem as duas portas da adoração e do respeito pelo sagrado. Porém, mãe Geia castigou-o pela morte da serpente-dragão, forçou-o, como expiação, a pagar um tributo anual, deveria exilar-se três meses por ano, retirar-se para o país dos Hiperbóreos, o extremíssimo norte do mundo, deixando o santuário ao fervor apaixonante de Dionísio, deus de características inversas das suas, que para aqui arrastava as Fúrias, suas serventuais, as Ménades, semi-deusas loucas, atravessadas ambas pela húbris, a desmedida, o excesso, que dominaria à noite a mente das mulheres, tornando-as solenes bacantes, cavalgando-se furiosamente umas nas outras, estiraçando coelhos e homens, bebendo do seu sangue e comendo da sua carne.

Tina encolheu os ombros, dando a entender que citava histórias da carochinha. Sancha ofendeu-se, perguntou-lhe, sorrindo maquiavelicamente, quando o santuário fora fechado, estaria ela enganada, não fora no tempo dos cristãos. Tina ficou séria, lábios cerrados, acusou a imputação maldosa, mas respondeu profissionalmente, o santuário fora definitivamente encerrado em 394 d. C. por ordem do imperador Teodósio, o Grande, César cristão, sob acusação de paganismo, lugar propício a manipulações mágicas e a assombrações pagãs. Ah, bem me parecia, desabafou Sancha, comentando sarcasticamente, e os cristãos cognominaram de Grande o imperador Teodósio, sim, para os seus interesses maior não podia haver.

Tina prosseguia a lengalenga mil vezes repetida aos turistas, nada sentia do que dizia e cada vez que falava em deuses atirava a mão direita para o lado, com alguma força. Era um tique que tanto significava que estava repelindo o que a sua boca proferia como em nada daquilo acreditava. Como exemplo da disparataria dos antigos gregos, apontou-nos para uma pedra redonda reconstruída, artificial, oval, cingida por armilas esculpidas – os gregos acreditavam que o seu território estava no centro do mundo e no centro da Grécia estava Delfos, chamavam ao santuário o “umbigo do mundo”, omphalos, esta pedra, densa e pesadíssima, em forma de ovo, constituía, por seu lado, o centro do santuário. Sancha desculpou-os, o mundo para eles era o Mediterrâneo e o Próximo Oriente, não detinham as nossas noções geográficas. Tina percebeu a contrariedade das palavras de Sancha e, porventura suspeitando de uma boa gorjeta ou receando que Sancha fizesse queixa no hotel, abriu-se num longuíssimo sorriso e deu-lhe razão, prosseguindo, Zeus soltou duas águias, uma de cada ponta do rio Oceano, que cingia e circundava a terra em movimento veloz e impetuoso, as águias encontraram-se justamente aqui, em Delfos, por isso era considerado o centro da Grécia. E no centro do santuário, ao lado da pedra oval, onde poucos podiam aceder, encontrava-se a pítia ou pitonisa, o oráculo de Delfos, consultado pelos gregos um dia por cada mês dos que Apolo permanecia em Delfos, sempre ao dia sete, a pitonisa era a voz do deus Apolo, deus do vaticínio, da profecia, do anúncio certeiro do futuro.

Sancha arrebitou as orelhas, viera ali por causa do oráculo, aquele que profetizara ser Sócrates o homem mais sábio da Grécia por mais privilegiar a filosofia e a sabedoria do que o dinheiro, a fama e o prazer, Sancha, arremetida desde os 15 anos por convulsões físicas e visões incógnitas, queria saber tudo sobre o oráculo, melhor, sobre a pitonisa, era uma mulher destinada desde criança a essa função, mostrava-se numa pequena gruta, outros diziam que num altar, ambos concordavam que se sentava numa espécie de tripé forrado com a pele da piton matada por Apolo, daí o seu título, não falava, gesticulava, esbracejava, esperneava espojada no chão, enfim, dizia Tina num espanhol límpido, estrebuchava, desgrenhada, soltava uns sons como uma muda desesperada, uns alegavam que era naturalmente muda, o selo do deus, que assim a destinava a pitonisa, outros, que lhe tinham cortado a língua à nascença. O grego inquiridor de Apolo fazia-lhe uma pergunta, pela qual devia pagar bom dinheiro, todos os gregos tinham acesso ao santuário mas só os que o abonassem com uma boa maquia eram autorizados a inquirir a pítia. Esta mastigava folha de louro, bebia água santificada, estrebuchava, dizia Tina, nada de inteligível proferia. À sua frente, os sacerdotes de Apolo, um coro obrigatoriamente de cabeleira branca, isto é, idosos, de longa experiência de vida, inspeccionavam-lhe os gestos desmedidos e os gaguejos sem nexo, reuniam-se e respondiam por escrito ao inquiridor, primeiro em verso, depois, criticados por tão maus poemas compostos em nome de Apolo, em prosa. Aqui, Tina não se conteve, lançou-nos um sorriso desdenhoso, repetindo, maus versos, querendo dizer que nada tinham de sagrado, eram apenas versos humanos.

Tina apontou para o fundo, lá em baixo, a uma certa distância, à beira de uma estradinha. É a fonte de Castália, onde os peregrinos se purificavam antes de acederem ao santuário, ali eram experimentadas a pureza e a boa intenção dos que desejavam inquirir a pitonisa, isto é, Apolo, ofereciam uma cabra e sobre o seu corpo espargiam água da fonte, se o animal se mantivesse imperturbável Apolo acederia a ser contactado, se o corpo ou a pele da cabra se agitasse, não o poderiam fazer, faltava-lhes pureza suficiente. De um modo ou de outro, a cabra seria sacrificada à entrada do templo.

Aproveitei para a inquirir sobre a realidade histórica, sublinhei, a realidade, o que os historiadores de hoje dizem. Sancha afastou-se, mostrando-se mais interessada nas ruínas, que ia interpretando com a reprodução de um desenho cartografado que o motorista nos dera. Sentara-se à beira da presumida entrada do templo de Apolo e tomava incessantes notas, como que tomada por um arrebatamento.

Tina, respeitando o afastamento de Sancha, disse-me em voz baixa que no final do século XIX tinha sido descoberto o segredo do oráculo, a causa dos silabados da mulher-oráculo, os balbuciados taramelados de moribunda exalando gemidos de dor e agonia, as frases sem sentido, amálgamas de sílabas juntas ao acaso, não correspondiam, evidentemente, à incarnação de Apolo no seu corpo, como o grego antigo pensava, um deus a falar num corpo humano, não adequado à expressão divina, por isso gaguejava, bamboleava sons e palavras inexistentes, agitava o corpo, contorcia-se como se atiçado por um fogo ameaçador, trincava avassaladoramente folhas de loureiro, exaltando-se. Todo este cenário e espectáculo era interpretado pelos sacerdotes, porventura com boa fé, como a descida de Apolo ao corpo da mulher mágica, transmitindo ao crente a resposta à sua pergunta, uma resposta sensata, fixada no universo das possibilidades concretas, para a formação da qual, com os óbulos de prata e ouro cedidos ao templo, possuíam uma rede de informadores e conselheiros por toda a Hélade, que lhes permitia alvitrar o território onde novas colónias se podiam instalar e determinar com algum grau de certeza que contendor venceria uma guerra.

Tina, olhos largos, triunfantes, puxou-me pela manga da camisa, voltou as costas a Sancha e, como se as suas palavras denotassem um troféu de iluminação, esclareceu-me que nas escavações francesas do final do século XIX tinham sido descobertas várias fendas, uma espécie de falhas nas rochas do santuário, que exalavam gazes tóxicos, uns livros referem dióxido de carbono, outros metano, fumarolas que, inaladas em pequenas quantidades, favoreciam o delírio histérico, por isso a pítia retorcia-se e lançava frases sem nexo, encontrava-se em pleno desvairamento, alucinada, por vezes desmaiava, pressupondo-se, ela, os sacerdotes e os crentes, possuída pelo deus. Esta é a verdade, disse-me, tratando-me pelo nome, Miguel, espanholado, como se ambos fôssemos cúmplices de um céu claro contra o obscurantismo negro de Sancha.

A pítia tinha junto a si uma caldeira de bronze decorada com carrancas exprobadoras de seres abomináveis habitando o Hades, o fundo da terra e mundo dos mortos. Presumiam serem estes monstros horrendos que, libertos por Apolo, deus da claridade, ausente no extremo do mundo, Dionísio permitia ascenderem à superfície da terra em forma de Fúrias e Ménades, as bacantes nocturnas, forçando-as a esquartejar o corpo dos animais caçados, a comer carne crua, a despojar-se de vestes e a oferecer-se a quem as desejasse.

Assim Sancha à noite no hotel, tal o ímpeto, o furor com que me arranhou a pele e me trincou o corpo que cheguei a recear que, como as Ménades, filhas de Dionísio, retalhasse partes de mim para sentir o aroma do sangue quente e o sabor da carne crua.

Santuário de Delfos, Agosto de 2016.

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