Raízes - Ana Cristina Silva

A ronda do soldadinho
2018-09-21 17:16:29Conduziram-me a uma cela, onde se encontrava o inspector Silva Carvalho. Ele estava sentado à minha espera com um sorriso grande no seu rosto cinzento. Procurei pontos de referência, mas o espaço era exíguo, mobilado apenas com uma mesa e duas cadeiras, uma delas sem costas onde me deveria sentar. Uma janela com grades lançava no chão manchas de sombra, como se uma penumbra pudesse esconder outra.
O inspector parecia algo nervoso, mas não seria por causa do que me iria acontecer. Interrogatórios como o meu e bem piores estavam sempre a suceder naquela cela. Ali cumpria-se, do seu ponto do vista, o seu dever, pouco importavam os meios. Silva Carvalho baixou por um instante o olhar sobre mim, pressentindo que eu fazia parte daquelas pessoas raras a quem as ameaças físicas podiam tornar ainda mais determinadas.
Primeiro fui interrogada pelo próprio inspector, mas depois começaram a surgir outros agentes na cela. Entravam e saíam às revoadas, exibindo ameaças de violência, mesmo quando pretendiam parecer agradáveis. Sentia-me a asfixiar apertada por uma multidão de homens, as perguntas misturavam-se naquelas bocas como se fossem uma só. Às vezes, dava ideia de estarem ali para uma conversa de café: “Então como te chamas?” “E, tens irmãos?” “Que idade é que tens?” Por vezes, aparentavam ficar ofendidos com o meu silêncio. Mas, outras vezes, as suas frases prolongavam-se, carregadas de ameaças: “Por que é que não falas? Não queres que te aconteça nada, pois não? É melhor começares a prestar declarações!” E prosseguiam ininterruptamente: “És do PCP? Distribuis o Militante? És do MRPP? Trazias contigo papéis?” A certa altura, um deles berrou furiosamente na minha cara: “Vais continuar a mentir, sua porca comunista… Não me mintas que eu não sei o que te faço”. Aquele agente gostaria de me mostrar o que pensava verdadeiramente de mim. Agarrar-me pelos ombros e sacudir-me com força, mas o inspector abanou a cabeça e deu-lhe indicação para que parasse.
Perante a sua expressão furiosa, não consegui manter a indiferença impassível que mostrara até aí. Estremeci, com medo que ele desse livre curso à sua cólera, mas mesmo sendo um ligeiro estremecimento, eles notaram-no. Mais do que medo daqueles homens, tinha receio de fraquejar.
Vozes suaves, vozes furibundas, vozes ameaçadoras, vozes brandas e de novo iradas, juntas num coro inconciliável, repetindo vezes sem conta as mesmas perguntas. Entendia os seus métodos, aqueles homens pretendiam que sentisse medo, que sentisse dor para me abrir com os agentes que tinham as vozes mais simpáticas. Mas eu não iria dizer nada, compreendia muito bem que pronunciar um nome que fosse era perigoso para o nomeado. O círculo de amigos e conhecidos era explorado com uma exactidão minuciosa, a mais ínfima pista era para ser seguida até à exaustão.
Estava sentada naquele banco sem costas, de boca e olhos fechados, decidida a não dizer uma palavra. Tentava não ouvir nada do que os agentes perguntavam. Eles interrogavam-me demoradamente sobre os meus amigos e sobre as minhas actividades. Só uma vez gritei: “Aconteça o que acontecer, não digo nada!” Com o pensamento esforçava-me por sair dali, como se introduzisse outra pessoa no meu lugar e era com ela que os agentes da Pide falavam. Às vezes não aguentava e a minha vontade era deitar a mão a qualquer coisa e espancá-los sem conta nem medida. Uma ideia ridícula, obviamente impossível de se realizar, mas tal não me impedia de os ameaçar: “Hei-de ser feliz uma vez na vida, quando vocês estiverem encostados à parede e eu tiver uma metralhadora na mão.” Alguns riam-se, outros redobravam as suas intimações. A visão daqueles homens mortos era uma imagem feliz, perdida no meio de tantas outras palavras. E resistir era acreditar que aquela frase poderia vir ter a força num outro mundo onde as ameaças pudessem ser invertidas. Resistir era antes de mais continuar a ter fé de que havia de sair daquela prisão viva. Sobretudo era conseguir transformar a turbulência do medo num enorme vazio, um estranho local oco onde ninguém me tocava.
Foi assim durante dois dias, fizeram perguntas e mais perguntas, interrogaram-me mesmo sobre coisas que eu não podia saber, às vezes durante dez horas seguidas. Só ouvia as vozes deles muito ao longe. Depois a meio da segunda manhã perderam a paciência. Juntaram-se vários agentes na minha cela, todos particularmente maus, um deles agarrou-me pelos braços e encostou-me à parede. Então rodearam-me - seriam no total uns dez - e desataram a cuspir-me na cara. Um escarro atrás de outro. Procurei dominar o ritmo da respiração, focar a minha atenção numa figura a milhares de quilómetros dali ou a um século de distância daquele instante. A minha intenção era a de não mostrar nem um único sentimento, nem a mais pequena reacção, fixar-me a uma aparência inatingível, sobretudo não chorar. De tanto me concentrar, via-me sentada nos degraus das escadas da minha casa em Mértola e a minha mãe a limpar-me a cara. O esforço de concentração não provocou, no entanto, um afastamento completo; quando finalmente me deixaram em paz os meus olhos encheram-se de lágrimas. Nesse dia comecei a insultá-los. Chamei-lhes assassinos e torcionários por matarem os resistentes das colónias. Chamei-lhes colonialistas. Chamei-lhes bufos. Então um deles interrompeu-me com um peido sonoro. Voltou-se e olhou para mim com um sorriso sardónico nos lábios: “ toma, cheira lá este que tenho outros iguais se te armares em esperta. E depois desatou aos berros” É um monte de esterco, umas putas é o que todas vocês são. Não descansarei enquanto não te der uma valente sova, é só o inspector autorizar.”
Nesse mesmo dia, umas horas mais tarde ordenaram-me que fizesse a estátua: “Agora vais fazer o Cristo.” Dois pides pegaram-me nos braços, um de cada lado. Sabia que ao fim de poucas horas naquela posição ficaria rígida como um cadáver. Caída do céu, como uma mensagem divina, a minha boca abriu-se para uma resposta certeira: “Está bem. Enquanto me agarrarem fico nesta posição. Quando me largarem, baixo os braços e a tortura tanto é para mim como para vocês.”
Soltaram-me, nenhum dos agentes tentou contrariar-me. Um murmúrio velado perpassou pelos meus lábios, extinguindo-se logo a seguir. Entendi que também eu detinha algum poder. Até àquele momento tinha oposto o isolamento à brutalidade dos que me torturavam. Barricara-me, tentando abstrair-me das ameaças dos agentes. Mas a aparente ausência de sensibilidade e indiferença não seriam suficientes para aguentar muito mais tempo, porque na realidade nada do que os pides me diziam me era indiferente nem eu era insensível aos seus insultos e intimidações. Imaginar-me fora dali não me bastava como arma para os enfrentar. A descoberta desse poder trouxe-me alento e, surpreendentemente, comecei a cantar a ronda do soldadinho de José Mário Branco: “um dois e três, era uma vez um soldadinho. Um menino lindo que nasceu no roseiral. Os meninos lindos não nascem para fazer mal.”
Ao ouvir-me cantar, a expressão dos dois agentes que estavam na cela comigo alterou-se. Um deles, num acesso de furor, ordenou aos berros que me calasse. Prossegui: “Os senhores da guerra não matam, mandam matar. Os senhores da guerra não morrem, mandam morrer.” O pide fixou-me dura e profundamente nos olhos e eu devolvi-lhe o olhar enquanto prosseguia a cantoria. Ele ainda levantou a mão para me dar um murro na boca, mas, no mesmo instante, desfez o gesto. Era evidente que por detrás daquelas cantigas estava o meu desprezo, uma superioridade insolente da minha parte que, mais tarde ou mais cedo, ele teria de esmagar, mas não naquele momento em que o seu turno terminava e ele estava quase a sair. O colega que entrasse de turno que se encarregasse de mim.
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