Raízes - Miguel Real

Estuário
2018-12-26 13:49:49LÍDIA JORGE
CULPA E DECADÊNCIA
Estuário, novo romance de Lídia Jorge, parece debruçar-se sobre aquela zona psiquicamente inconsciente da mente dos portugueses que lhes (nos) desperta um sentimento eterno de culpa. À culpa, como expressão sentimental, alia-se a decadência como movimento do tempo, ambas cruzadas na história da família Galeano.
Uma família presa pelos liames da culpa: Edmundo carrega às costas a culpa histórica sentida e vivida pela Europa actual, trabalha para a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) no campo de Dadaab, no Corno de África, onde, por acidente infeliz, para salvar um recém-nascido, tinha decepado parte da mão direita (três dedos e um troço da palma da mão). Edmundo faz parte de um grupo de europeus que tentam dar vida a populações desamparadas no deserto, sem água, sem alimentação, ali refugiadas a caminho de uma Europa rica.
Manuel Galeano, armador, o patriarca da família, setenta e cinco anos, carrega às costas a culpa social de, colhido pela voragem da crise económica, não ter desconfiado do Estado português e, assim, em conjunto com os filhos Alexandre e Sílvio, ter levado a família à falência, máxima expressão pessoal da decadência. Manuel, em si, incorporará o máximo de culpa e, homem de palavra, velho empresário que dirigiu cinco cargueiros e habitava uma casa de cinco pisos no Largo do Corpo Santo, em Lisboa, erigida pelo bisavô, procederá em consequência e coerência (o leitor constatará a acção a que nos referimos). Perdidos três dos cinco cargueiros, restaram dois, que Alexandre, engenheiro, segundo um plano da Comunidade Europeia e do Estado português, transformou em depósitos marítimos para transporte de água para os países no Próximo e Médio Oriente, dela necessitados. Porém, ainda que assinado, o plano foi preterido em função da dessalinização da água e os dois barcos ficaram encalhados ao largo de Abidjã. Porém, tinham de ser pagos as novas paredes interiores dos “cascos” para transporte de água. Há sete anos que os Galeano esperavam por resposta do Estado e ela não vinha: o Estado português não é pessoa de bem, diz-se na p. 59.
Sílvio, advogado, outro filho de Manuel Galeano, sente-se culpado das contas feitas. Já se desfizera da casa particular, do iate e acabava de tentar vender o “Imortal”, o cavalo. Conservava o BMW, mas tivera de regressar a casa do pai.
Dispensada a criada, Charlote, filha de Manuel, e o seu filho David tinham igualmente regressado a casa paterna para tratar de Titi (Tatiana), irmã de Manuel, acometida por doença, eterna solteira por abandono do noivo, vindo a descobrir-se ser este bígamo. No interior de Estuário, Charlote viverá, a mais bela história de amor narrada nos romances portugueses recentes (não temos espaço para a narrar em todos os pormenores, uma história em que o amor é servido camilianamente de equívocos, traição, presunção de assassinato, promessa de vingança, arrependimento…), tão bela e maravilhosa que o seu filho nascerá com as feições do homem amado, Amadeu Lima, não sendo filho deste.
Como se constata, o realismo praticado por Lídia Jorge não só não enjeita aportações de outros horizontes estilísticos, como o fantástico e o maravilhoso, como as incorpora harmoniosamente. Passada a fase ingénua da literatura portuguesa em que o romance ambicionava tornar-se documentário real ou ter imediata e directa expressão social, o realismo de Lídia Jorge é, como diria Saramago, um “realismo de portas abertas”: em Estuário, Edmundo avança perseguindo uma bola de luz que o estimula a escrever, não um livro, mas O livro redentor da humanidade, Charlote incorpora tão fundamente o amor por Amadeu Lima, mesmo ao nível celular, que David, sendo filho de outro, tem daquele os olhos, o cabelo e os malares do rosto e o narrador e Edmundo vão fazendo alusões de sentido cripto e misteriosos a Pessoa e a canções populares russas.
João Vasco, o malandrete da família a quem tudo corre bem, sobretudo quando tudo corre mal a todos, prepara-se para regressar à casa paterna, expulsar a Titi da suite onde sempre residiu e, com a companheira russa grávida, entre a falência geral da família, tomar conta da casa.
A figura literária da família Galeano assume a decadência social e financeira da classe média portuguesa nos recentes anos da crise. Uns mais, outros menos, todos se sentem culpados, mas, mais do que todos, pesa a consciência de culpa em Edmundo, que, face ao labirinto de dívidas da família e sentindo forte a responsabilidade da morte do pai, promoverá inesperadamente um princípio de solução com o Estado via Amadeu Lima, que será, talvez, um novo principio de vida para Charlote e seu filho.
Edmundo é uma figura simultaneamente real e maravilhosa, possui um quid transversal a ambos os registos e nela reside o centro de Estuário: concentra em si a culpa do cidadão ocidental face aos desprotegidos do mundo, sentindo-se igualmente culpado do estado actual da humanidade. No delírio mental que a culpa lhe desperta e a decadência aviva, sente-se responsável pela redenção da humanidade. Como um profeta de outros tempos, deseja escrever um livro, mesmo com a mão direita decepada, e encontra inspiração nos últimos versos da Ilíada, alvitre da Titi. Isto é, desde Homero que a Europa tudo fez erradamente, de um rio civilizacional liso e limpo criou um delta labiríntico. É preciso agora recomeçar a partir do último verso da Ilíada, superando e anulando o delta e criando um “estuário” (não temos a certeza de ser esta a interpretação da autora para o título do seu romance).
Todas as personagens parecem suspensas num tempo português, que não avança nem recua, aguardando uma solução, que, no passado, constituiria o húmus mental donde nasceria o sebastianismo e hoje parece desembocar em Nossa Senhora de Fátima, cujo santuário foi visitado este ano por oito milhões de portugueses.
Uma das partes mais belas de Estuário é justamente a descrição do resumo do livro de Edmundo nas seis últimas páginas do romance. Porém, o leitor só se encontrará capaz de apreciar devidamente essa beleza se cumprir a iniciação da leitura das duzentas e setenta e sete anteriores. Encare-as como uma iniciação à vida para, no final, atingir a essência desta em forma de beleza.
Estuário,
Crítica de Miguel Real
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