Raízes - João Morgado

Excerto de «O Livro do Império»
2019-01-18 11:05:09Almeirim, Abril, 1570 – Tinha a voz que tinha. Escanifrada, porque bradava aos céus por tudo e por nada. Aguda, porque tinha dezasseis anos e era um catraio. Altiva, porque além de tudo, era rei. “Eu ordeno!” – e ordenava. Assim ia o reino, ao mando de D. Sebastião, senhor de uma voz escanifrada, aguda e altiva. Uma voz que não chegava às Índias, ao Brasil, às Áfricas, mas chegava ao fundo do salão, onde estavam os servidores, dezenas de servidores – nobres e plebeus.
“O pintor que entre”, ordenou. A voz era mais alta que ele, e a autoridade dava-lhe uma dimensão que não tinha. Cristóvão de Morais , um apreciado retratista da corte, entrou no salão, trazendo entre mãos o esboço da figura real – um encarrego da rainha Catarina de Áustria, viúva de D. João III, avó d’el rei. Os serviçais trouxeram o cavalete, os pincéis e as tintas, os panos, os diluentes.
“Terei que posar por muito tempo?”
Perguntou com o mesmo tom com que ordenava - voz aguda, altiva e escanifrada. O retratista respondeu com a voz de servo - sumida, curva e frouxa. Disse que não, ao mesmo tempo que fazia a vénia. Que era só um estudo para definir a composição final – outra vénia -, coisa pouca, uns minutos. Seria rápido. Vénia final.
D. Sebastião, o pequeno rei de voz alta, colocou-se em posição majestática. Olhar frio e desafiante, rosto autoritário, mão na cintura para dar porte, a outra caída. O pintor ainda tentou chegar-se junto do monarca para lhe compor a postura, mas foi impedido - “Não podeis tocar em Sua Alteza Real”. Cristóvão afastou-se por entre mil vénias, andando às arrecuas. De voz cada vez mais sumida, curva e frouxa, lá solicitou que el-rei endireitasse mais as reais costas, decaísse um pouco o real queixo e exibisse um real sorriso. Mas o monarca manteve a mesma real postura, como se nada lhe tivesse sido dito. Apenas acrescentou:
“Atentai que não desejo o retrato de corpo inteiriço como no quadro pintado por Alonso Coello. Só dos joelhos para arriba!”
Ordens reais. Ordens a cumprir. Não importa o tom da voz. A voz que não chegava às Índias, ao Brasil, às Áfricas, mas que chegava ao fundo do salão, ao cavalete, ao pintor. Cristóvão de Morais entendeu a mensagem. Alonso Sánchez Coello, um espanhol renascentista, tinha pintado o monarca pelos seus oito anos. Uma pintura tão realista que lhe expunha as deformidades. Percebia-se que el-rei tinha um tronco firme mas curto das espáduas à cintura. Por outro lado, era comprido da cintura até aos joelhos. Tinha coxas longas e pernas arqueadas, sendo que uma destas, a esquerda, era mais curta que a outra.
“Pintai só dos joelhos para arriba!”, repetia ele de voz escanifrada, aguda e altiva. O mesmo era dizer: pintai-me na perfeição, deixai as minhas malformações de fora. Cristóvão entendeu o sentido do pedido. A obra que tinha em mãos teria de ser lisonjeira para o monarca. Ainda que imberbe, era a fronte de um reino, o comandante-mor de exércitos, o inspirador de batalhas – e naquele caso, viril mancebo à procura de uma princesa de influente família. Não era assim com todos os monarcas? Bastava atentar nas pinturas e iluminuras de Eduardo VI da Inglaterra, coroado com 10 anos, ou de Francisco II de França, entronizado aos 15 anos? Rostos reservados, em sinal de maturidade; tinham as tintas dos mestres que encobrir os soberanos ameninados que perante si pousavam. Os retratos eram verdadeiros actos políticos. Assim que se concentrou no meio corpo de D. Sebastião. Depois recortaria a tela, expurgando o molesto da desarmonizada figura real.
João Morgado
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