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Raízes - Ana Cristina Silva


A velha escritora

2019-08-21 10:30:18

Sou uma escritora velha, já só os leitores da minha idade se recordam do meu nome. Hoje em dia quase ninguém me lê, mas continuo a escrever, apesar de ser mais difícil publicar. Vivo de uma reforma miserável e todas as manhãs sigo as mesmas rotinas. Desço devagar do terceiro andar até ao café no prédio ao lado do meu. Nos dias de sol sento-me na esplanada a beber uma bica e a folhear o Correio da Manhã, o único jornal que o estabelecimento oferece. De vez em quando levanto os olhos, observo as pessoas na paragem do autocarro ou a atravessar a passadeira de peões. Rostos indistintos, cheios de pressa, como se caminhassem no interior de uma névoa, apenas ligeiramente acima do solo. É raro descobrir uma cara familiar como se habitasse sozinha no meio da vasta multidão de Lisboa. Ninguém se mantém no seu campo de visão o tempo suficiente para ser identificada. Antes cumprimentava os vizinhos, dizia bom-dia, agora quase só existem turistas. Não que me interessa muito quem vive no bairro porque a única pessoa com quem desejo conversar é comigo através da escrita, mas, às vezes sinto a minha voz de narradora tão banal que gostaria de ser confortada por um singelo “olá”, não sendo suficiente ouvir as frases educadas do empregado. Ao fim de dois cafés volto a subir para o apartamento, regresso à solidão muito particular de um romance, persigo um trajecto que é tão desconhecido para os meus leitores como para mim. Não é apenas dentro de casa que estou só, mas sobretudo no interior de um livro por finalizar. Fecho-me no interior de uma história, adiando repetidamente as transações diárias com a realidade. Na narrativa cabem multidões e se procurar cuidadosamente várias sombras da minha pessoa estão no meio das personagens. Falo delas para me encontrar e elas são os muitos outros que gostaria de encontrar. É para elas que invento grandes amores, que sonho as piores traições, desenhando-se assim várias formas de causalidade que os mais incautos tomam por destino. O que é escrever senão inventar-me com outros desejos e vontades?
Sou, portanto, considerada uma idosa e como muitas mulheres velhas a minha vida é bastante solitária. Às vezes um dos meus sobrinhos telefona-me ou vou jantar fora com a minha irmã. Espera-me como destino uma soma infinita de dias brancos e noites negras, onde apenas imagens do passado desaguam na minha mente, recordações de amantes cujas feições são pouco nítidas, fantasmas que suplantam o rosto real e se desviam do meu corpo flácido e da pele envelhecida. Assim, esforço-me por me perder no labirinto da ficção, onde é possível sonhar com outro tipo de tempo e outras zonas de futuro. Nesse exercício haverá sempre redenção, mesmo que as palavras escritas sofram de debilidades e se inflamem com as moléstias da minha alma.
O sol da manhã ensombra-se a ele próprio quando desço de casa para beber a bica matinal à esplanada, quase sempre à mesma hora. Esta rotina é tão real quanto o devaneio que sustenta as passagens do romance. Quando subo para a casa, ao sentar-me à secretária em frente à janela, a ficção coloniza-me, substituindo rapidamente as árvores e os pássaros que vejo passar. Árvores e pássaros que se imobilizam numa extrema quietude. Este estado de coisas conduz-me literalmente para uma alucinação dirigida, mesmo que o livro incida sobre factos reais, cresce ele próprio dentro de outra realidade.
A sedução aos leitores é um dos desígnios do romance. Não o apresento como o único, embora nestes tempos, seja sem dúvida, necessário. Quando comecei a escrever, há muitos anos, só existia a silhueta de um escritor por detrás do romance, uma entidade quase invisível. Bastava que as palavras fossem copiosas e fantásticas e que contasse uma história que nunca antes ninguém contara.

Comentários


A mostrar os últimos 20 comentários:

Luís Vendeirinho, 2019-10-23 17:44:21

Rugas no papel são rugas na pele: ambos envelhecem.
LV

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