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Raízes - João Pinto Coelho


Mãe, Doce Mar
Excerto

2022-10-24 11:45:58

Tinha doze anos quando conheci a minha mãe – esta frase dá para tudo, até para abrir um romance.
E, no meu caso, é verdade.
Podia ser descritivo, dar-vos todos os detalhes desse dia em Lafayette, quando saí de casa para finalmente a conhecer, mas prefiro fazer de pássaro e ver tudo lá de cima, de olho naquele miúdo com as pernas pouco firmes no átrio do aeroporto, no voo de Nova Iorque acabado de chegar ou nos primeiros pas­sageiros a surgirem com as bagagens. Ao miúdo, na verdade, só as mulheres interessavam, as que chegavam sozinhas, e ele a ver-lhes no rosto se havia vestígios de mãe ou os traços do retrato que um dia alguém lhe mostrara. Todas traziam con­sigo essa possibilidade e todas passaram por ele.
Até que ela parou: um nada menos miúda do que o miúdo que a esperava, vestido amarelo cavado, o cabelo curto e preto que mal tocava o pescoço, entre outras frivolidades de que ele não se esqueceu.
Não quero ir mais longe, revelar se o seu abraço teve o aperto perfeito ou até se aquelas lágrimas foram um caudal de culpa ou outra coisa qualquer.
Três meses depois, fui eu a ir ter com ela.
Sei que se valeu de tudo para me extasiar – sei, porque foi capaz. Não que fosse grande feito conseguir abrir a boca de espanto a um garoto como eu, chegado de Lafayette, no sul do Luisiana. Afinal era Natal, o Natal de Nova Iorque, o hotel em Times Square, a vertigem à janela e a 7.ª Avenida uns trinta andares abaixo, desfocada pela neve que começara a cair – a neve que eu via pela primeira vez. Ainda os dias seguintes: A Chorus Line na Broadway, ou uma loja assombrosa com cinco andares de brinquedos, camadas de fantasia com darth vaders em pessoa a andarem nos corredores; a casa de choco­late onde cabia à vontade o trono de um Pai Natal – daqueles em quem se acredita, de olho azul e barriga, nada dos malnu­tridos com babete descaído a fingir de barba – e, por fim, o vento doido no topo do arranha-céus, de onde teria caído não fosse a mão do gorila que me mantinha agarrado e enxotava aviões como se faz às moscas.
A duas horas de carro, Shelton, uma casa na floresta:
a dela.
À sua volta, nada, apenas o arvoredo. Nos dias que se seguiram, a lareira sempre acesa, as bengalinhas de açúcar, as meias penduradas e enchumaçadas de doces, as espetadas de marshmallows a torrarem no brasido, um pinheiro genuíno encostado ao vidro enorme e à paisagem do bosque que endu­recia com a neve. Junto ao tronco, as prendas já arrumadas trazidas de Nova Iorque, caixas grandes, gigantescas, o peso tomado às escondidas não fosse aquilo ser um logro e ouvir-se chocalhar. Na noite da Consoada, alguém bateu à porta. Era Bob, um homem alto, agarrado a uma forquilha com um lam­pião nos dentes. Atrás dele, garotos agasalhados a encherem o ar de fumo com o bafo dos seus cânticos e a chamarem-me com os olhos para sairmos noite fora pela estrada da floresta à procura de outras casas.
Um dia acordei cedíssimo, ainda de madrugada, e desci à cozinha. Em cima da mesa havia um cesto de fruta. Lembro­-me da maçã, e só porque parecia o adereço de um filme – roxa, maior do que uma meloa. Peguei-lhe, saí de casa e fui a estalar dentadas até chegar à floresta.
Quase lá, uma cerca de madeira, tosca como devia; depois, sim, as árvores despidas de frio, troncos brancos, árticos, e arbustos a remexerem-se que só um adulto idiota atribuiria ao vento, e não aos índios Mohegan que lá estavam emboscados. Bastaria ouvir os passos a mastigarem a neve para saber que esta caíra ao longo da noite inteira. Um pouco à frente, vi a raposa branca a assanhar um guaxinim, o que, mesmo sendo mentira, parecia tão verosímil como tudo aquilo que ocorre a um miúdo perdido num bosque.
Podia ser mais descritivo? Podia. Prefiro ser aritmético: por quanto se multiplicam, no lento correr da idade, uns dias assim vividos? O que se lhes diminui para não enfrentar o resto? Há sombras aflitivas ocultas naquele quadro, há muito que não o confundo com o cenário pastoril de uma caixa de bombons.
Hoje, não sei. Entre o deve e o haver dessas contas impos­síveis, talvez só reste o lugar.

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