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Raízes - Ana Luísa Amaral


Poesia

2010-02-23 00:00:00

Feitos de Lava: Oito Poemas

FEITOS DE LAVA: OITO POEMAS

Açores, 2009

1.

Há-de ter sido assim:
o princípio do mundo
– antes de os grandes sáurios
invadirem o chão
e os céus

Muito antes
da súbita explosão
que lhes pôs fim

Há-de ter sido assim:
um caldo borbulhante
e os veios roxos,
entre azul e lilás,
a rocha
negra negra negra

– e cor
de fogo

2.

Ou nessas veias:
via sacra de espanto
informe,
a promessa das formas
mais perfeitas

Ou ali antes:
a quase perfeição?

Uma forma de fala
entre o quase trovão
e o ressoar,

o tempo que parou,
sem voz –

3.

Depois,
a lava fria,
lagos da lava fria

– e a perder-se
o olhar,
cratera quase igual
a gelo e lua,
quase sem luz,
o tempo a repetir:

o fim do mundo,
quem sabe
o seu romper

4.

Não tem conforto
o corpo
ao lado da cratera

sabe-lhe a cinza,
sente-lhe o vazio

e a implosão
das veias
e do sangue

5.

Esta paisagem
não tem a cor de areia,
mas é cor de vulcão
a sua carne

e de repente,
como em flanco,
o verde em vários
lumes

E o horizonte:
tão liso,
como se fosse
orientado
a régua

6.

Mas nulos são
os pontos cardeais

Onde quer que o olhar,
navegam as estradas,
e o mar sobeja

– sempre o mar –

sobrando,
campos bordados
a rosa e a lilás,
demais, demais
as flores

Não há voz
que resista,

nem coração
que fale

7.

A enseada
de repente
invadiu-se de barcos

pequenos,
coloridas as bandeiras,
quase
uma via sacra

Ou o conforto humano
em luta contra o sal
a lutar contra o frio
do nevoeiro

a lutar contra
o sol

8.

Faltava só
o nevoeiro
aqui

E vinha já de cima,
de antes dos grandes sáurios,
dos veios roxos,
do caldo borbulhante

De lá chegara já,
embora omisso
em letra

Nesta letra
que tanto se esforçou
em fogo
e lava,

faltava
ver-se
nula

E o princípio
de tudo
é como um quadro
negro

E é lógico
que a apague
em número:

desenhado
arremedo
de
infinito



 

BIOGRAFIA (CURTÍSSIMA)

Ah, quando eu escrevia
de beijos que não tinha
e cebolas em quase perfeição!

Os beijos que eu não tinha:
subentendidos, debaixo
das cebolas

(mas hoje penso
que se não fossem
os beijos que eu não tinha,
não havia poema)

Depois, quando os já tinha,
de vez em quando
cumpria uma cebola:

pérola rara, diamante
em sangue e riso,
desentendido de razão

Agora, sem contar:
beijo ou cebolas?

O que eu não tenho
(ou tudo): diário
surdo e cego:

vestidos por tirar,
camadas por cumprir:

e mais:
imperfeição



 

A IMPOSSÍVEL SARÇA

Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer

Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita abençoada
mas demais e cristã
também castigo

Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras

que não chegam
— mas cegam






NEM DIÁLOGO, OU QUASE

Um tempo pouco apetecido – ou muito apetecido, igual a esta nuvem, a este rio que vai e vem, mas não fica nunca. «Escreve», disse.

 

Imagino-te, minha mão,
numa sala cheia de sol,
as cortinas transparentes ao lado,
uma mesa ampla.
Dizes-me: «escreve».

Desejar uma onda,
uma avalanche de paixão entre os dedos,
o tempo: este papel pequeno.
Escuto, mas há coisas com gume de espada
e não consigo obedecer como gostava.

Estão impressas na memória,
as palavras,
mas era aqui que um verso do avesso,
sons transparentes,
haver bolhas de sons

Como uma sala a sol,
os grãos de luz
na mesa muito ampla
não formam um padrão que se organize.
«Escreve»,
continua a minha mão.

Mas o céu repete-se tão claro,
o rio é como roda que não pára,
bicicleta com aros de metal fundente.
E o frio sente-se aqui.

«Não sei», respondo-lhe.
«Comprei agora este caderno, a sua capa é verde,
não conheço esta mesa, nem o seu mármore,
não há família entre mesa, caderno, esta nova caneta,
onde se esconde a mesa que conheço?,
o verde carregado?,
não sei», insisto.

«Só te conheço a ti, ó minha mão.
E até hoje me pareces longínqua.
Onde está essa onda?
Onde a avalanche de que eu precisava?»

Toca-te devagar a outra mão.
Conhecem-se a calor.
Mas, eu?
Entre verde e caderno, tudo novo,
o azul quase gume,
as espadas de gume circular,
o tempo em vidro,
é tão fácil perder-te.
«Talvez virando aí à tua esquerda», digo-te,
«descendo-me do ombro.
Talvez aí eu te consiga ver ao longe,
acenar-te sem sons».

«É por aqui», repito.
Mas tu não vês a luz
que passou a vermelho e de repente.
E moves-te entre carros, sons de carros,
de vozes.

E só agora, e afinal, reparo
que a minha mão nunca saiu daqui,
ficou entre cadeiras, sossegada.
Não está dispersa,
não era sua a voz,
por isso essa avalanche lhe pareceu serena.

Chamei-vos «minha mão»,
mas sois os monstros largos que me assaltam.
Já não é sol o sol,
é deste tempo o tempo.
E todavia, pesadelos meus,
podemos tomar chá, se desejardes,
vós que não me sois mão,
mas lhes sabeis da forma, a imitais,
vos transformais em dedos,
unhas, sangue.

Vinde,
ressuscitados em carne e gente,
e sentai-vos aqui.
Olhai: as minhas duas mãos,
as duas:
preparam-vos o espaço.
Não sei como chamar-vos, por que nome.
Parcas, moiras, melopeias de brilho.
Não sei como chamar-vos.

Mas finalmente escrevo.







! SONETO QUASE DE AMOR !

Caminhas como vírgula encostada a página,
não como folha ou haste exclamativa.
Boa comparação seria esse soneto
de caminhar no solo, o 130,

aquele perto do teu porte lento
que eu desejava em bela exactidão:
o mais correcto ponto de exclamação
em que a tua cabeça fosse aqui no solo

e os pés tocassem raso o que era ali no céu.
Mas falamos de página, não falamos de corpo
porque senão falava dos teus olhos,

e punha mais dois versos, e fazia-os rimar.
Diria «São perfeitos os teus olhos.
Porque voam –»







OUTRAS METAMORFOSES DA MEMÓRIA

poema 1

Como farpa
A memória,
Ou como espada

Às vezes como pena,
Devagar

O granulado
Da parede agora
A evocar um toque, palavras
Enroladas
Sob a língua,
Desejos de falar

Farpa
Ou pena
De cisne

No meio do lago
Em círculos
Concêntricos:
Uma espada de sol:

Lâmina
Rebentando a superfície

poema 2

No meu braço
Cansado
O seu corpo macio
Adormecido

Um quarto do tamanho
Do meu corpo
– E o quarto
Preenchido

poema 3

Uma saudade pode ser completa,
Total,
Ofuscar como sol numa tarde de verão:
País mediterrânico, alcatrão
Fumegando
Nas pedras do passeio

Uma saudade não é
Como a saudade, abstracta, metódica,
Mas pontual e única,
O fio mais afiado que punhal:
Bórgias em mil banquetes,
Inimigos caídos
Entre reposteiros

O ecrã cheio,
Visão obliterada às outras coisas,
Uma saudade fere como raio:
Fumo e algum carvão
Onde antes: vida –

poema 4

Coisas que guardamos
Sempre: antes fitas e cartas, bocados de ternura,
Lembro-me: a minha avó e um caracol louro de mim criança

Evanescentes as coisas que guardamos,
Às vezes encontrá-las por gavetas, às vezes na memória,
Invenções tantas só para mais ninguém: o meu diário
Encapado num papel de flores, passeando na pasta
Em sólido trajecto

Coisas guardadas como essa,
Há curto tempo, tão bonita que pensei outra vez:
Só para mais ninguém, que assim a comoção é minha só
E me posso espantar de cada vez que a lembro

Enquanto estão assim,
Elas são nossas, as coisas que guardamos:
Intactas, a apetecer dizer incólumes,
Por comovidas gavetas e memórias

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