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Raízes - Ana Cristina Silva


Dou-te a minha voz

2010-04-21 00:00:00

Dou-te a minha voz

DOU-TE A MINHA VOZ

Dou-te a minha voz. Não precisas de ter medo. Escrevo para ti. Estás deitado, imóvel, mas a tua aparência é pacífica. Dias inteiros, horas completas, passam-te ao lado. O tempo segue o seu rumo, eterniza-se, o que não parece atormentar-te. Há alguns meses golfadas de sangue arrastaram para longe de ti as palavras e tu ficaste aprisionado entre figuras que não projectam sombras no teu cérebro. Resta apenas um buraco oco na tua mente e à volta um corpo a respirar. Não sentes prazer nem dor. És um corpo que não busca nada: não inventa paixões, não sonha nem sofre desilusões.

Quando te vi a primeira vez senti-me inundada de compaixão. Eras belo, com um perfil de príncipe, mas rapidamente percebi que os teus olhos embaciados não apreendiam nada do mundo. Acho que foi nesse instante... Decidi que não iria permitir que a morte te invadisse para sempre. Foi com esse espírito, por assim dizer de missão, que iniciei este caderno. Talvez um dia o consigas ler e, então, essa escuridão que não te vê e onde nada para ti tem significado, tenderá a clarear. Como se tivesses percorrido durante algum tempo um país, cujas fronteiras são definidas por um eclipse das células. Ficará registado por onde quer que andes. Nesse estado de suspensão, permaneces vivo. Esforço-me para que não o esqueças... Continuam a existir vozes vindas de fora, misturadas com tudo o que existe no mundo. Gostaria que as escutasses. Lá fora as vozes prosseguem a sua algazarra e não te quero deixar para trás. Nunca te abandonarei a essa vigília silenciosa, onde as trevas persistem e adensam o seu cerco em teu redor. Disponho da escrita como a minha única arma.

Terei de começar pelo princípio. Existe sempre um princípio. Aliás, podem existir tantos princípios quantos os que for capaz de inventar porque não sei exactamente o que aconteceu. A tua mãe contou-me que detinhas uma posição importante em Bruxelas. Dirigias um desses departamentos onde são escritos documentos que depois se transformam em códigos para os negócios de investimento de toda a Europa. Chegaste cedo ao topo da carreira de funcionário da Comissão Europeia. Consigo imaginar-te a dirigir reuniões com uma expressão séria, ou a assinar os últimos documentos muito para além do horário normal. Quando finalmente saías do escritório, caminhavas pelas ruas determinado em desfrutares da vida. Nessa altura os teus olhos ainda não eram duas frinchas cegas à transfusão de imagens. Pelo contrário, os teus olhos acrescentavam imagens fantasiadas e transgressões amorosas à passagem de mulheres belas e as sensações provocadas moviam-se vivas no teu cérebro.

Também eu sou uma mulher, falo contigo a toda a hora, mas o teu silêncio não se demove com as minhas palavras. Há muito que os teus olhos estão vazios e não expressam qualquer desejo. Apenas pela força do hábito, os manténs abertos. O teu olhar perde-se ao longe, retendo apenas um brilho trémulo do mundo. Neste desespero chego a fantasiar que o teu corpo se anima sob a acção dos meus dedos, como uma estátua de barro à qual sou capaz de dar vida.

Por ter passado tantas horas a teu lado, canalizando as minhas energias para os teus mistérios, imagino-te feliz no último instante, mesmo antes do ataque. Vejo-te nitidamente, regressando à noite para o teu elegante apartamento de alto funcionário. Tomas um duche quente. Voltas descalço para o quarto, ainda com a água a escorrer da pele. Moves-te pelo quarto, transferindo para gestos felinos os segredos de uma imagem confiante. Nada nos teus movimentos sugere a circulação de um minúsculo coágulo vagueando nas artérias. Pelo contrário, respiras suavemente e o firme ondular das costelas cinge o contorno do tronco nu enquanto escolhes um fato de bom corte. Tens um encontro com uma mulher que conheceste há dias e preocupas-te com o perfume a usar. Pegas em vários frascos de marcas caras antes de tomares uma decisão. Decides-te por um perfume que faz sobressair o teu cheiro natural. Observas-te ao espelho antes de saíres. No reflexo reencontras a imagem de um homem determinado, uma imagem toda feita de sedução. Não captas, nem num rápido vislumbre, a expressão violácea de olhos esbugalhados que será a tua muito em breve, mas que, por enquanto, se esconde do lado de dentro da face. De qualquer modo, esse rosto pertencerá a alguém que, também para ti, será sempre um estranho. Portanto, o que sai da tua garganta, enquanto te borrifas com perfume, não é um grito de aflição, mas um suspiro de deliciosa expectativa ao pensares na mulher que aguarda por ti no restaurante. Deitas uma última olhadela à cama como se dos lençóis emanasse o brilho do corpo dessa mulher com quem pensas fazer amor à noite.

Segues a pé para o restaurante. É relativamente perto. Escureceu entretanto. O lusco-fusco é a hora a que preferes caminhar. A essa hora nada é eterno e a realidade surge suportada pelo efémero das coisas. A luz azul e as estrelas ténues forçam os contornos das pessoas à languidez de uma certa indefinição. As aparências libertam-se do seu invólucro e expandem-se por infinitas possibilidades. Ondas, radiações estranhas, propagam-se pelo ar, aflorando os desejos mais obscuros dos corações humanos. Costumas ser sensível a essa hora em particular, mas nesse dia passas apressado. Sentindo-te protegido pelas forças auspiciosas do universo, caminhas convicto de que os teus desejos para essa noite alcançarão plena satisfação.

O restaurante apenas aceita reservas marcadas com muita antecedência, mas o teu nome e a referência à tua posição na Comissão Europeia, tem um efeito naturalmente mágico. A mulher já se encontra à tua espera no bar. Dirigem-se para a mesa que o empregado vos indica. Durante o jantar manejas a conversa por um espaço onde as palavras possam dançar ao teu ritmo. O que acontece entre os dois é, portanto, uma dança. Os teus lábios entregam-se a uma história de sedução da qual tu próprio emerges, cada vez mais nitidamente, como o sedutor. Contas um episódio cheio de insinuações e de pormenores íntimos que pretendem impressionar. Ao mesmo tempo que vais relanceando a garganta nua da mulher, espreitas os movimentos sensuais do seu corpo. As imagens imaginadas transmitem novos impulsos às palavras que vais proferindo e, estas, por sua vez, são traduzidas para respostas de dúbio significado pelos lábios da mulher. Nenhuma das frases trocadas se fixa aos verdadeiros significados. Por baixo da maquilhagem, os olhos da mulher não param de tremer sob as pálpebras, absorvidos pela ânsia de um beijo. Ocupado como estás, não notas como as tuas frases divagam, começando a errar o movimento entre os dentes e a língua. No teu interior, nas cavernas do teu cérebro, palpita uma bolha prestes a irromper numa nascente de sangue. Quase no fim da refeição, propões um brinde. Aos aproximares o copo dos lábios, sentes o coração a contrair-se. Levas as mãos à cabeça, mas os teus dedos não conseguem estancar a hemorragia no teu cérebro. O sangue, bombeado com loucura, vai abrindo fendas e tu, o mais sedutor dos homens, cais sobre a mesa fulminado..

Desde o ataque que não vives sozinho nem acompanhado porque deixaste de ter acesso às palavras que os homens usam. Durante um mês permaneceste em coma, recebeste cuidados especializados. As máquinas respiravam por ti como se o teu corpo fosse mais um tubo. Ao fim desse tempo abriste os olhos, mas o teu espírito permaneceu fechado. É por isso que a tua mãe me contratou e eu estou aqui. Sou a tua enfermeira.

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