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Raízes - Paulo Castilho


A arte e a estiva

2011-07-04 00:00:00

A arte e a estiva

Enfiei um casaco, desci as escadas, fui andando pela Rua da Escola Politécnica em direcção à Baixa. Mais à frente, depois do Príncipe Real, meti à direita pela Rua da Rosa. Daí passei para a Rua da Atalaia, onde o Eurico tinha montado a sua versão da noite lisboeta, incluindo um pequeno batalhão de figurantes, todos vestidos de preto, todos muito pálidos, todos com cara de angústia terminal. O Eurico, aparentemente esquecido das palavras que há tempos tínhamos trocado no estúdio, veio ter comigo, todo ele sorriso: fantástico, pá, consta praí que o país está na fossa, mas diz-me lá se é verdade ou não, a malta tem a noite mais fantástica da Europa. Alucinante. Mortal. Bué de fixe, como diz o meu filho. Não sei o que é que o Eurico teria bebido. Ou fumado. Olha-me só para isto, olha-me bem mas com olhos de ver para estas ruas, estas ruas, e as casas, já me viste as casas? e a História toda que aqui anda, História, História, com maiúscula, o que eu quero dizer, pá, estás a seguir-me? é que, pá, séculos de história aqui à volta é só levantar os olhos, porra, nem levantar os olhos, bater com o pé na calçada (bateu com o pé) tudo para a malta desfrutar, isto é cultura, isto é que é cultura, pá, é a única cultura, não vale a pena fazer mais nada, e já me topaste os graffitis? Diz-me lá, mesmo tu que és desse clube dos narizes no ar, diz-me lá, mas a sério, sem preconceitos, eh pá, não está aqui ninguém a ouvir, podes falar à vontade, diz-me lá se isto não é mais forte, mais humano, mais cá das entranhas que essas pieguices do rapaz Ângelo, a tocarem os dedos na Sistina, que merda é essa? isto não, pá, arrancado da alma, os gajos dos graffitis é que são genuínos, é arte, merda, coisas directas, sou eu a falar, és tu, pá, somos nós todos, é a nossa alma estampadinha aqui nas paredes, é o colectivo, porra, o colectivo é crucial, eu olho para isto e tiro-lhes o chapéu, um tipo anda aqui com estas paneleirices todas, scripts, câmaras, argumentos, ângulos, mas é muito mais simples, aprender simplicidade, não era esse gajo Pessoa que dizia uma coisa assim? uma lata de tinta e sprayas a tua alma numa fachada do século XVIII, diz-me, há alguma coisa mais bonita? mais genuína, alma, do fundo da alma e tudo o resto é política e merda. Só falta música, é sempre preciso ter música. Deu dois passos para o lado, carregou num botão e a instalação sonora começou a produzir uma ária da Tosca, tão alto que os prédios estremeciam. Estás a topar a cena? Pronto, admito, mudei umas coisas no teu livro, jogamos à porrada lá fora se quiseres (já estávamos lá fora), mas foi para melhor, desta mudança gostas, de certeza que gostas, não me vens com as merdas do outro dia. No teu livro o caramelo vem a trautear uma música dos Humanos. Mudar de vida? Tás a brincar com a malta. Desculpa que te diga, pá, mas é banal, é prás miúdas do call center e eu não faço filmes prás miúdas do call center, o que a cena está a pedir é um corte, uma ruptura. Sabes como é, pá? Um acto de transgressão. A malta chega aqui e diz: o caramelo vem todo porreiro para a noite, copos, dar ao rabo, vem cá fora curtir o fresco, dois ou três copitos, a miúda já não me escapa, tudo isso OK, muito OK, mas é o que o espectador espera, só que depois, em vez duma coisa ligeirota tipo Humanos, tu desculpa, pá, o espectador leva nas trombas, que se lixa, com Ritorna vincitor! é fracturante, fracturante é o que está a dar. Faz bem ao colesterol. Salta o Ritorna vincitor. Vira o discurso do avesso. O pessoal não está à espera. A pessoal entra em desequilíbrio. É fracturante. Topas? E pôs-se a cantar, tentando acompanhar a ária:   

      Ah! sventurata! Che dissi?

     E l'amor mio?

     Nesse momento surgiu numa janela do segundo andar uma mulher dos seus cinquenta anos e físico avantajado enrolada num roupão de turco cor-de-rosa gritando, com uma voz que batia a Aida aos decibeis: vai prá estiva malandro - e despejou o conteúdo dum jarro em cima da cabeça do Eurico. Prá próxima é da sanita, madraço. Após o que fechou a janela com estrépito.    

     Um assistente produziu um trapo com que o Eurico se secou. Porreiro, mesmo porreiro - disse o Eurico ainda a secar-se  - eu não te dizia, um jarro de água, já viste? a malta tem autorização da Câmara para fazer este chavascal, a Câmara grama o chavascal, a Câmara curte o chavascal, mas a gaja também é fracturante. Portugal é grande.

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