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Poema e Poesia de Álvaro de Campos

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos... 
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isto — 
Nesta localidade da cidade... 

Há vinte anos!... 
O que eu era então! Ora, era outro... 
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada... 

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram! 
Sei eu o que é útil ou inútil?)... 
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?) 

Tento reconstruir na minha imaginação 
Quem eu era e como era quando por aqui passava 
Há vinte anos... 
Não me lembro, não me posso lembrar. 

O outro que aqui passava, então, 
Se existisse hoje, talvez se lembrasse... 
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro 
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui! 

Sim, o mistério do tempo. 
Sim, o não se saber nada, 
Sim, o termos todos nascido a bordo 
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer... 

Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma, 
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais 
lembradamente de azul. 

Hoje, se calhar, está o quê? 
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos. 
Estou parado físisca e moralmente: não quero imaginar nada...

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro, 
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado, 
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente. 
Quando muito, nem penso... 
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora, 
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento. 

Olhamos indiferentemente um para o outro. 
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol, 
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada. 

Talvez isso realmente se desse... 
Verdadeiramente se desse... 
Sim, carnalmente se desse... 

Sim, talvez... 

em "Poemas" 

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