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Poema e Poesia de Natália Correia

Paixão
Natália Correia

Elegia dos Amantes Lúcidos

Na girândola das árvores (e não há quem as detenha) 
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge. 
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha 
O contorno lunar da noite que te finge! 

Se ao menos eu gelasse uma corda do vento 
para encontrar a forma exacta dum violino 
Que fosse a sensibilidade deste pensamento 
Com que a minha sombra vai pensando o meu destino 

E não houvesse o sono dum telhado 
Entre ter de haver eu e haver o tecto; 
E a eternidade não estivesse ao lado 
A colocar-nos nas costas as asas dum insecto 

Meu amor, meu amor, teu gesto nasce 
Para partir de ti e ser ao longe 
A cor duma cidade que nos pasce 
Como a ausência de deus pastando um monge 

Ah, se uma súbita mão na hora a pique 
Tangendo harpas geladas por segredos 
Desprendesse uma aragem de repiques 
Destes sinos parados pelo medo! 

Mas só porque vieste fez-se tarde, 
Ou é a vida que nasce já tardia 
Como uma estrela que se acende e arde 
Porque não cabe na rapidez do dia? 

Nem homem nem mulher. Só a moeda antiga: 
Uma inflação de deuses que não pode parar 
Como um pássaro cego à nora da intriga 
Que é a morte no centro connosco a circular. 

Será o mesmo tempo que nos cabe? 
Talvez sejas a raça prematura 
Duma gota de orvalho que se há-de 
Negar à minha sede desértica e futura. 

Como o brilho dum sol partido ao meio 
Damos luz pela nostalgia da metade. 
Partes para ser gaivota no meu seio. 
Mas não trazes no bico uma cidade. 

Aqui pousou um pássaro de lume 
Que deixou um voo subterrâneo 
Na repetida vibração do gume 
Que cada hora traz à lâmina do crânio. 

Teus dedos num relógio como a picada duma abelha 
A fabricar o mel da estação perdida! 
Que quanto a primavera um rouxinol na telha 
É toda a melodia que traz na unha a vida. 

O navio tem dois extremos ermos: 
Os cabelos para Vénus e os pés para Marte. 
Mas a viagem é o mar com a terra a ver-nos. 
E com lenços à vista ninguém parte. 

Ah, se ao menos eu pudesse agora erguer-me 
Como uma pedra pelas minhas mãos futuras 
E ficasse para sempre a aquecer-me 
Ao sol que cega efémeras criaturas! 

Se soltasses as aves da rotina 
E de um jorro de deuses abrisses a comporta 
E reclinada em tua espádua genuína 
Eu entrasse num céu sem ter que achar a porta! 

Se tu viesses cavaleiro branco 
Orvalhado pela manhã do meu instinto. 
E ficasses a chamar-me como um canto 
No porvir do nosso último recinto! 

Se ficássemos espuma de Maio cor-de-rosa 
Nas praias donde Maio se retira, 
Enrolados nos panos duma paisagem silenciosa 
Que fosse a pura sonoridade da ausência duma lira! 

Ah, as sementes que te exigem em declive 
Entre abismos onde nunca te despenhas 
E esfumados voos em que te embebes e revives 
O que de ti já pousou no cume das montanhas! 

Inútil decifrarmos este oráculo de ave absorta 
Na incontinência do voo que a abrasa. 
Se houver um palácio sem porta, talvez seja a porta. 
Se houver uma casa sem tecto, talvez seja a casa. 

em "Passaporte"

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