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Raízes - Vitorino Nemésio


Cabeça de Boga

2022-07-26 10:54:00

Este mês recordamos Vitorino Nemésio, com um dos seus contos: 


Cabeça de Boga

No exame do segundo grau fiquei distinto; o Abílio ficou sufi­ciente. Uma tristeza! Compareceu de calça comprida, colete branco, a châtelaine de D.ª Claudina fazendo de corrente de relógio. Como roía nas unhas, o relógio era um descanso para encher o minuto de ignorância, atrapalhado com aquilo de «Qual foi o rei que mandou plantar o pinhal de Leiria?».
O Sr. Fontes, o professor das Cinco, que era membro do júri, bem cochichava de lá: «D. Dinis... D. Dinis!...» O Abílio, porém, doido por toiros, saíra-se com «D. Afonso IV, o Bravo» - e teve a raposa por um triz.
Cá fora, esperavam-nos meu pai e o dele ao lado do Sr. Professor.
O mestre não me disse nem palavra; mas a ele não o largou:
- Este cabeça de boga, que me vai estragar os resultados!
O pai do Abílio estava com vergonha do filho, com raiva ao filho, com raiva ao Sr. Professor, com pena de si, do Sr. Professor e do filho:
- Pedaço de mariola! (Olha como tens esse colarinho!). E fazer-me gastar um dinheirão, para ver isto!
- Este cabeça de boga, pôr-me uma nódoa na pauta! - teimava o Sr. Professor.
O pai do Abílio agachara-se um pouco para lhe limpar as lágri­mas, mas carregava no lenço e obrigava-o a assoar-se sem precisão nenhuma:
- Força!... O toleirão, que era o primeiro em decimais! (Ó pequeno, não chores, que o Sr. Professor manda na escola, e em ti quem manda sou eu!)
Mas o Abílio chorava mordido e com os olhos raiados de san­gue. Quando proclamaram os resultados, o Sr. Professor abrandou.
- Abílio Cardoso de Aguiar, suficiente. Mateus Queimado Gomes de Meneses, óptimo.
Meu pai deu um beijo no Abílio antes de me beijar a mim. O pai do Abílio apertou solenemente a mão a meu pai:
- Ah, Sr. Meneses! Que consolação, um filho assim!
Estávamos todos mais ou menos vexados; só o Abílio deixou de chorar. Não se sabia bem se por escapar à raposa, se por qualquer outra coisa. Num ímpeto de todo o seu ser atirou-me os braços e disse-me:
- Ó Mateus, ainda bem!
E foi nos olhos dele que eu me senti distinto...

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