Raízes - João Pedro Martins
Crónica - João Pedro Martins
2024-11-13 09:05:54Quando criança, a rádio era a banda sonora da minha vida. Sentava-me ou deitava-me sobre o sofá na sala da casa de minha mãe e ouvia, religiosamente, os meus locutores preferidos, José Ramos, António Sérgio, Luís Filipe Barros, e as suas potentes vozes. Carlos Cruz e a sua equipa, no Pão com Manteiga, mais tarde Herman José e A Flor do Éter matavam-me de riso, Júlio Isidro e a Febre de Sábado de Manhã era o programa de entretenimento mais desejado, Meia de Rock de Rui Pego não me deixava dormir cedo e contribuía para que andasse sistematicamente a bocejar nas aulas do dia seguinte, Adelino Gonçalves tocava todas as minhas músicas favoritas e, claro, Pretérito Quase Perfeito de Rui Morrison, A Menina Dança com José Duarte e As Noites Longas do FM com António Santos eram imperdíveis e contavam histórias que me fascinavam.
Não é fácil dizer isto e nem sequer me encomendaram o sermão. Faço-o apenas em jeito de desabafo e pela angústia que sinto pela rádio destes dias. Pela paixão obsessiva e pela vida a ela dedicada.
O que foi já não volta a ser e a rádio hoje tem dificuldade em recrutar talentos, principalmente porque muitos adolescentes e jovens adultos não têm rádio ‘no seu radar’. Os meus filhos, cujo pai cresceu na rádio, não se conseguem prender à mesma e dizem que nenhum dos amigos a ouve. Em vez disso, as escolhas recaem sobre o Spotify e o YouTube.
A situação é tão óbvia que custa a entender o que é que os actuais programadores de rádio ainda não entenderam?
Há pouco tempo, em conversa com alguém de uma grande e bem estabelecida emissora jovem, foi-me dito que os ouvintes adolescentes estavam a desaparecer rapidamente. Quando a meio da conversa sugeri o que poderiam fazer, deu-me como resposta: «Oh, nós nunca poderíamos fazer isso». Retorqui que, assim sendo, será bastante provável que, mais tarde ou mais cedo, talvez percam definitivamente todos os ouvintes.
O problema em recrutar jovens para a rádio está directamente relacionado com o facto de esses mesmos jovens não estarem a ouvir rádio. A indústria não os conecta nem os engaja. É claro que existem excepções, mas há muito que se perdeu o hábito, por exemplo, de se ouvir os grandes locutores com seus vozeirões, piadas, brincadeiras e telefonemas interativos.
Não estou a sugerir que o que se fez nas décadas de 70 e 80 seja o que se deveria estar a fazer ainda hoje, mas era bom que se lembrassem que o sucesso das emissoras e locutores desse tempo teve por base a sua relação com o público. A maioria dos grandes locutores com quem trabalhei teve mais sucesso quando eram apenas alguns anos mais velhos do que a audiência. Eles eram divertidos, loucos e soavam para os ouvintes como um deles.
Como é mais do que sabido e não é novidade para ninguém, de há duas décadas a esta parte quando a rádio passou a ser apenas e só música, era previsível que poderia morrer rapidamente aquele que não o fizesse tão bem ou melhor que os outros. Mas chegámos a outra realidade temporal e é imperativo fazer a pergunta: porquê ouvir, agora, longos alinhamentos comerciais entre músicas tal como se ouvia no tempo dos pais se eles, hoje, podem eliminar essa chatice facilmente com uma aplicação de música quase gratuita que lhes permite escutar apenas aquilo que realmente gostam de ouvir?
Enquanto isso, tornámo-nos tão conservadores na nossa maneira de fazer as coisas que se o dinheiro continuar a chegar para as despesas não se pensa sequer em competir. Ninguém quer saber de um tal princípio básico de marketing ou programação que diz que precisas de ser sempre melhor que o teu concorrente. Talvez alguns até o façam, mas a maioria não.
Hoje, o que os jovens querem é alguém que os entretenha e, curiosamente, a rádio pode, facilmente, encontrar as futuras estrelas, por exemplo, no YouTube, fazendo com que o público seja 10 vezes maior do que actualmente. Então, que esperam? Contratem-nos. Façam-nos suas estrelas. Paguem-lhes bem porque muitos já estão a ganhar milhares de euros por fazerem apenas um vídeo diário. O importante é que a rádio viva como merece. Quando é que planeiam resolver o problema?
Eu amo a rádio e não quero ser negativo em relação às mesmas, mas agora que os jovens ouvintes se afastaram, recuperá-los não será tarefa fácil. Sei que emitir menos anúncios é arriscado e afectará as receitas, mas se não houver rapidamente mudanças de estratégia, daqui a uns anos será tarde.
A rádio para já ainda é vista como algo grande e a sua importância é infindável. Mas a permanecer assim, um dia perderá esse estatuto. Se a rádio quer contratar novos talentos, eles andam por aí. É verdade que, da forma como as actuais rádios estão formatadas, talvez esses jovens talentosos não se encaixem na maior parte das programações existentes ou até em nenhuma. Por isso, a rádio tem que abanar, tentar algo diferente e permitir que ‘sangue novo’ possa surgir no éter. Basta passar um bocadinho de tempo no YouTube para se perceber que o entretenimento é o grande diferencial. Os alinhamentos infindáveis de «mais música por hora» não têm hipótese nenhuma.
João Pedro Martins
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