Tudo começa na Primavera de 1833. Profundamente abalado por um desgosto de amor, o doutor Vasco Lacerda decide abandonar Lisboa para tentar curar o coração ao sol de uma nova vida, nos trópicos. Contudo, no decurso da sua viagem, vê-se arrastado, contra vontade, para o mundo da escravatura e toma contacto direto com realidades de que já ouvira falar, mas que nunca tinha sentido e percebido na sua verdadeira natureza. E trava, também, conhecimento com a gente que, para o melhor e o pior, povoa esse bárbaro mundo. Do Outro Lado do Mar leva-nos numa viagem emocionante por esse universo, dos sertões de Angola às fazendas do Brasil, do ventre do navio negreiro à fábrica de açúcar, e mostra-nos como mesmo nos sítios mais improváveis e nas situações mais extremas podem nascer e crescer a solidariedade, a abnegação e fortíssimas relações de amor.
É o segundo livro que leio do autor. O outro foi "Uma Fazendo em África" e prefiro, indubitavelmente, este.
No presente livro entramos nos horrores da escravatura de africanos, não na que é mais conhecida, que sucedia nas Américas, mas no antes de lá chegar, no lado de cá, desde as profundezas de África, antes de chegarem os portugueses, antes de chegarem aos navios negreiros com a bandeira da minha pátria. A recordar que se fomos dos primeiros países a abolir esta escravatura fomos dos primeiros ou mesmo os primeiros a iniciá-la.
Mas neste romance, entre os horrores há a flor da esperança e da humanidade. Entre a brutalidade, a mesquinhez e a hipocrisia.
Com um retrato de uma cidade que adoro: Salvador. Da qual Jorge Amado bem descreveu que a raça dominante é o mestiço, fruto da sua envolvência nesta prática desumana.
"Isto é o Brasil, não é Portugal, não! Outros hábitos, doutor. É indispensável que Vossa Senhoria tenha pelo menos dois negros para lhe carregarem uma cadeira de boa qualidade, e um criado para seguir junto. Aqui, quem sair á rua sem essa corte de africanos pode estar certo de que vai passar por miserável. Toda a gente tem escravos, até os antigos escravos, viu?” (p. 79)
Onde também se encontra o insólito e o incrível de um médico anti esclavagista que é raptado para um barco negreiro (por muito feia que seja a expressão, é o seu nome) e através dele conhecemos a vivência nestes caixões flutuantes. E, também, quando sem embrenha numa fazenda como personagem privilegiada, permite sabermos o que se passava aí.
Este é um dos temas mais difíceis para mim e há momentos em que pensei não continuar. Mas o autor tem a capacidade de levar leitores como eu adiante, a saber como vai acabar tudo isto. E desenrola as várias histórias que se entrelaçam de um modo que simplesmente não pude parar de ler.
São de ressalvar as passagens profundamente humanas, os retratos psicológicos das personagens.
“Dois dias depois, numa tarde em que os senhores tinham ido a São Félix, que ficava do outro lado do rio, regressou á biblioteca, apanhou um livro e contou-lhe, baixinho, a história de Kayongo, o feiticeiro que tinha um olho no meio da testa, com o qual podia ver coisas tão distantes que demorava três dias a chegar lá. Mas o livro nada lhe respondeu. Intrigada, encostou o ouvido ao papel, na esperança de conseguir ouvir o que o livro lhe tinha a dizer, mas ele permaneceu teimosamente calado. Talvez o livro dos brancos não quisesse falar com ela, por ser preta, admitiu, com tristeza. Saiu da biblioteca, pé ante pé para não fazer barulho. Estava desolada mas certa de que acabaria por deslindar aquele mistério.” (p. 172)
O fim? Humano.