José Saramago
Biografia
Escritor português, natural de Azinhaga, Golegã, viveu em Lisboa, para onde os seus pais se mudaram, desde os três anos. Vive, actualmente, em Lanzarote, Ilhas Canárias. Concluiu os estudos secundários em 1939, em Lisboa. O seu primeiro emprego foi como serralheiro mecânico. Foi ainda desenhador, funcionário público nas áreas da Saúde e da Previdência Social, director literário de uma editora, jornalista e tradutor. Colaborou em várias revistas e jornais, como a Seara Nova, o Diário de Lisboa, A Capital e o Jornal do Fundão, publicações em que manteve uma actividade regular de cronista. Em 1975, exerceu funções de director-adjunto do Diário de Notícias. Actualmente, vive exclusivamente do seu trabalho literário e tem participado em inúmeros congressos e conferências, em Portugal e noutros países da Europa, de África e da América. Fez parte da primeira direcção da Associação Portuguesa de Escritores
Embora se tenha estreado, em 1947, com Terra do Pecado, só em 1966 retomou a publicação das suas obras, com o volume de poesia Os Poemas Possíveis. Desde então, tem vindo a afirmar-se como um dos mais significativos autores portugueses da actualidade e, sem dúvida, um dos mais conhecidos. A primeira fase da sua carreira foi marcada, sobretudo, pela poesia (Provavelmente Alegria, 1970 O Ano de 1993, 1975) e pela crónica, género que começou por granjear-lhe notoriedade, através dos jornais onde colaborou (Deste Mundo e do Outro, 1971 A Bagagem do Viajante, 1973 As Opiniões que o DL Teve, 1974 Apontamentos, 1976). Saramago dedicou-se ainda, a partir de finais dos anos 70, ao teatro, publicando A Noite (1979, peça que tem como cenário uma redacção de jornal na noite de 24 para 25 de Abril de 1974 e que recebeu o prémio da Associação de Críticos Portugueses), Que Farei com Este Livro? (1980), A Segunda Vida de Francisco de Assis (1987) e In Nomine Dei (1993). No entanto, foi sobretudo como romancista que o seu nome se tornou consagrado, tendo publicado, em 1977, Manual de Caligrafia e Pintura. Levantado do Chão (1980, Prémio Cidade de Lisboa, Prémio Internacional Ennio Flaiano) constituiu um importante marco na sua carreira.
Uma das tendências mais marcantes da sua obra romanesca, assinalável em Memorial do Convento (1982), o seu romance mais célebre, é a da reconstituição de períodos históricos a partir dos quais é construída uma narrativa fantástica, que estabelece a ligação entre os dados verosímeis e concretos e realidades de ordem interior, fundamentais da vida humana, na sua interrogação e contradições constantes. Para tal serve-se o autor de uma imaginação prodigiosa, aliada a uma grande força lírica e capacidade descritiva. Temas mais ou menos constantes são os da verdade, da invenção e do papel da arte na construção do conhecimento possível do mundo. Saramago consegue criar uma cumplicidade profunda com o leitor, assumindo-se claramente, como narrador, no papel omnisciente de dominador da matéria romanesca e no acompanhamento das personagens, com as quais (devido, entre outros factores, ao seu estilo muito pessoal, com uma pontuação de que estão ausentes as marcas introdutórias do discurso directo) a sua voz se confunde por vezes de forma inextricável, num tom desenganado e irónico que o leva à moralização, ao aforismo, e a que está associada a preocupação com a construção positiva do Homem e do futuro.
Para além das obras referidas, publicou os romances O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984, Prémio do Pen Clube Português, Prémio da Crítica, Prémio D. Dinis, Prémio Grinzane-Cavour, Prémio do jornal The Independent), A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991, Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores), Ensaio Sobre a Cegueira (1995), Todos os Nomes (1997), Folhas Políticas, 1976-98 (1999) e A Caverna (2000).
A obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi alvo de acesa controvérsia, extravasando de aspectos puramente literários para a moral e a política. O tratamento dado à figura de Jesus Cristo (e a interpretação da religião cristã, em geral) foi considerado, por alguns sectores, ofensivo, tendo o subsecretário da cultura de então, numa atitude também controversa, excluído a obra da lista dos candidatos ao Prémio Europeu de Literatura. A polémica envolveu a APE, que já por várias vezes havia preterido obras de Saramago na atribuição do seu prémio, e que viria a consagrá-lo nesse ano, 1991, embora não por unanimidade. Um dos escritores mais traduzidos da literatura em língua portuguesa, publicado em variadíssimos países, recebeu ainda o Prémio Internacional Literário Mondello (1992) e o Prémio Literário Brancatti (1992), ambos italianos e atribuídos pelo conjunto da sua obra, o Prémio Vida Literária da APE (1993), o Prémio Consagração SPA (1995) e o Prémio Camões (1995). Em 1998, foi consagrado com o Prémio Nobel da Literatura, pela primeira vez atribuído a um escritor de língua portuguesa.
Em Novembro de 2000, foi distinguido com o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Santiago.
José Saramago publicou também dois volumes de contos (Objecto Quase, 1978, e Poética dos Cinco Sentidos, 1979) e iniciou, em 1994, a edição de um diário intitulado Cadernos de Lanzarote, que tem já, presentemente, vários volumes. Memorial do Convento e In Nomine Dei foram adaptados à ópera pelo compositor Azio Corghi sob os títulos, respectivamente, de Blimunda e Divara, tendo, entretanto, a primeira obra sido adaptada ao teatro, com representação, em Portugal, em 1999.
Livros escritos por José Saramago
Vídeos de José Saramago
Textos do Autor
Diversos
Carta para Josefa, minha Avó
Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los.
Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz. Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.
Fonte: Deste Mundo e do Outro
Frases célebres do livro «Ensaio sobre a Cegueira»
Foi trabalhoso abrir a cova. A terra estava dura, calcada, havia raízes a um palmo do chão. Cavaram à vez o motorista, os dois polícias e o primeiro cego. Perante a morte, o que se espera da natureza é que percam os rancores a força e o veneno, é certo que se diz que o ódio velho não cansa, e disso não faltam provas na literatura e na vida, mas isto aqui, a bem dizer, não era ódio, e de velho nada, pois que vale um roubo de um automóvel ao lado do morto que o tinha roubado, e menos ainda no mísero estado em que se encontra, que não são precisos olhos para cavar mais fundo que três palmos.Cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.A culpa foi minha, chorava ela, e era verdade, não se podia negar, mas também é certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada ato nosso nós puséssemos a prever todas as consequências dele a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala.Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos, façamos tudo para não viver inteiramente como animais.Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse, Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver sem olhos mas então deixará de ser humanidade.O mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos.A maior dificuldade para chegar a viver razoavelmente no inferno é o cheiro que lá há.Perguntar de que morreu alguém é estúpido, com o tempo a causa esquece, só uma palavra fica, MorreuNa morte a cegueira é igual para todos.Quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos.O costume de cair endurece o corpo, ter chegado ao chão, só por si, já é um alívio,Daqui não passarei.Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa somos nós.
Fonte: wikiquote.org