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Raízes


Deana Barroqueiro

2024-01-19 10:22:44

 

Rascunhos Secreto

Prólogo

Perdoai não vos declarar meu nome, mas, nos tempos que correm, falar verdade ou apontar vícios aos poderosos pode ser assaz perigoso, e eu, que andei pelas Índias, dei a volta ao mundo com Fernão de Magalhães e sobrevivi, não quero ser achado, uma destas noites, num beco esconso, com as goelas cortadas, em Lisboa ou em Sevilha, Deus me guarde e salve…

Alguns casos que aqui vos conto já foram narrados por muitos cronistas e poetas do reino, embora de modo a engrandecerem seus reis e heróis, esquecendo ou escondendo as partes mais sombrias e sangrentas dessas histórias, que esvoaçavam na corte em murmúrios e registos secretos, permitindo a um ouvido atento conhecê-las com todas as minudências ou, pelo menos, em parte, às mais tenebrosas. Se os cronistas largassem de si toda a lisonja e seguissem somente o rigoroso caminho da verdade, pudera mui bem ser que as desordens do reino estivessem já remediadas, com grande serviço de Deus e proveito da pátria; porém, cada um dá à realidade seus matizes e sentidos, exagerando, incitando, aniquilando ou divertindo, segundo lhe dita a paixão. Foram sucessos tão perigosos que, se estes escritos caíssem sob o olhar de invejosos e ressabiados, uma denúncia abastaria para me condenar às galés ou à degola, mesmo agora, quando estou homiziado em Sevilha e já não reina em Portugal el-rei D. Manuel I, mas seu filho D. João III, que, segundo consta na falazeira da corte, tem mostrado mais boa-vontade aos inimigos do que aos amigos de seu pai... por muitas e boas razões, como lereis nestes rascunhos.

 

Clarice Lispector

2023-12-29 15:43:19

Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, Recife. Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão? De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expectativa. E de puro alvoroço, eu acordava às quatro e pouco da madrugada e despertava o resto da família. Vestíamos depressa e saíamos em jejum. Porque meu pai acreditava que assim devia ser: em jejum. Saímos para uma rua toda escura, recebendo a brisa da pré-madrugada. E esperávamos o bonde. Até que lá de longe ouvíamos o seu barulho se aproximando. Eu me sentava bem na ponta do banco: e minha felicidade começava. Atravessar a cidade escura me dava algo que jamais tive de novo. No bonde mesmo o tempo começava a clarear e uma luz trêmula de sol escondido nos banhava e banhava o mundo. Eu olhava tudo: as poucas pessoas na rua, a passagem pelo campo com os bichos-de-pé: "Olhe um porco de verdade!" gritei uma vez, e a frase de deslumbramento ficou sendo uma das brincadeiras da minha família, que de vez em quando me dizia rindo: "Olhe um porco de verdade." Passávamos por cavalos belos que esperavam de pé pelo amanhecer. Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária. No bonde mesmo, começava a amanhecer. Meu coração batia forte ao nos aproximarmos de Olinda. Finalmente saltávamos e íamos andando para as cabinas pisando em terreno já de areia misturada com plantas. Mudávamos de roupa nas cabinas. E nunca um corpo desabrochou como o meu quando eu saía da cabina e sabia o que me esperava. O mar de Olinda era muito perigoso. Davam-se alguns passos em um fundo raso e de repente caía-se num fundo de dois metros, calculo. Outras pessoas também acreditavam em tomar banho de mar quando o sol nascia. Havia um salva vidas que, por uma ninharia de dinheiro, levava as senhoras para o banho: abria os dois braços, e as senhoras, em cada um dos braços, agarravam o banhista para lutar contra as ondas fortíssimas do mar. O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh, bem sei que não estou transmitindo o que significavam como vida pura esses banhos em jejum, com o sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei que estou tão emocionada que não consigo escrever. O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas, e trazia um pouco de mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele. Não demorávamos muito. O sol já se levantara todo, e meu pai tinha que trabalhar cedo. Mudávamos de roupa, e a roupa ficava impregnada de sal. Meus cabelos salgados me colavam na cabeça. Então esperávamos, ao vento, a vinda do bonde para Recife. No bonde a brisa ía secando meus cabelos duros de sal. Eu às vezes lambia meu braço para sentir sua grossura de sal e iodo. Chegávamos em casa e só então tomávamos café. E quando eu me lembrava de que no dia seguinte o mar se repetiria para mim, eu ficava séria de tanta ventura e aventura. Meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar. A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais? Nunca mais. Nunca.

Sandra Santos

2023-12-04 10:51:24

À espera

O tempo estava a mudar. O azul do céu dera lugar a um cinza claro que se estendia por todo o horizonte a fazer lembrar um lençol de linho já gasto, com uns rasgões, aqui e ali, em forma de nuvens. O sol escondera-se há muito e a temperatura estava a descer, ao ponto de um simples agasalho de inverno já não ser suficiente. Eram precisos gorros, luvas, cachecóis e botas forradas a pêlo para se poder andar na rua. A Luísa olhava pela janela, expectante por ver um fenómeno de que lhe tinham falado, mas que ela nunca tinha visto.

- É verdade! Juro! A minha mãe disse-me que, quando ela era criança, viu cair uns farrapinhos brancos do céu, e que eram tantos, tantos, que as casas e os carros deixaram de se ver. Ela diz que ficou tudo branco… E que foi lindo! - contava, com entusiasmo, o Rui.

A Luísa baixava os olhos e suspirava. Quando poderia ela ver aquilo de que toda a gente falava? Pensava. Tinha ouvido tantas histórias sobre a neve, sobre como todos se divertiam a atirá-la, a deslizar nela, a fazer bonecos com ela, a desenhar anjos no chão com o próprio corpo, que, todos os anos, mal chegava o inverno, ela se punha à janela, à espera.

- Luísa, o jantar está na mesa - dizia a mãe, enquanto a Luísa, com a cara colada ao vidro, olhava lá para fora.

- Mãe, mãe! Olha! Acho que está nevar - dizia, de vez em quando, saltitando de alegria. Mas não. A mãe explicava-lhe que eram apenas fagulhas da lareira da casa do lado, que a neve era muito diferente, mágica.

As aulas tinham terminado e as férias do Natal estavam ao virar da esquina. A Luísa e o Rui eram da mesma turma e gostavam de passar tempo juntos, mesmo durante as férias. Divertiam-se muito! Pintavam desenhos, faziam bolachinhas, com a ajuda da mãe da Luísa, viam desenhos animados na televisão, liam livros e, quando não estava a chover, andavam de bicicleta e jogavam à bola na rua, mesmo em frente à casa deles.

- Já escreveste a tua carta para o Pai Natal? - perguntou, um dia, a Luísa ao Rui.

- Ainda não! E tu?

- Eu? Claro que sim! Agora que já sei escrever, não precisei da ajuda da minha mãe. Escrevi-a eu sozinha – disse com orgulho.

- E que presente pediste? Um livro? Um brinquedo novo?

- Não. Desta vez, pedi uma coisa diferente…

Nesse instante, a mãe do Rui chamou-o para dentro de casa, pois começava a escurecer e o tempo estava frio. O Rui despediu-se da Luísa e entrou em sua casa, mesmo ao lado da da sua amiga.

Os dias passaram com tranquilidade e o cheiro a Natal sentia-se, cada vez mais, no ar. Na aldeia da Luísa, enfeitavam-se os jardins e as casas, compravam-se presentes, acendiam-se as lareiras, preparava-se o bacalhau, temperava-se o cabrito, faziam-se rabanadas, broinhas de mel e frutos secos, filhós, sonhos, arroz doce, papas de milho…

A Luísa gostava de participar em todas as fases de preparação do jantar da noite de Natal. Era ela que punha a mesa e que fazia a decoração, com pinhas, azevinho e velas. Era também a Luísa que recebia os convidados e os conduzia aos seus lugares na mesa e que, ao soar da meia-noite, distribuía os presentes, sempre com muito entusiasmo e alegria.

Finalmente, a noite de Natal chegou. O jantar estava delicioso e todos gostaram dos presentes que receberam, especialmente daqueles que a Luísa tinha feito com as suas próprias mãos! A Luísa também gostou muito do convívio e de ter cantado, como era habitual, a sua canção de Natal preferida, mas começava a ficar com sono e decidiu despedir-se. Afinal, já passava da meia-noite e ela tinha-se levantado muito cedo para ajudar a mãe. Quando se preparava para subir as escadas, pareceu-lhe ouvir alguém bater à porta e correu para abri-la. Mas não viu ninguém! Se calhar tinha ouvido mal. Mas eis que ouviu o mesmo barulho, outra vez. Abriu a porta, de novo, e olhou para a noite cerrada. Não viu nada. Então, pôs um pé na rua e depois o outro, e espreitou, esticando a cabeça. Nesse instante, sentiu o nariz frio, como se algo tivesse pousado nele. Olhou para o céu. Estava muito sereno e dele caíam uns farrapinhos brancos. No princípio, eram apenas alguns, mas, depois, multiplicaram-se e começaram a cair às centenas, aos milhares! Estava a nevar! As luzes da aldeia voltaram a ser ligadas. A noite virou dia. A aldeia toda saiu à rua. Mas a Luísa voltou para dentro de casa para escrever um bilhetinho, que deixou junto à lareira: “Obrigada, Pai Natal!”. Só depois se juntou a todos os outros para, finalmente, ver aquilo de que toda a gente falava e ela não conhecia!

Sandra Cabral Santos

Richard Zimler

2023-07-28 09:29:34

Uma perspectiva pessoal sobre a Lusofonia
Richard Zimler

Quando a Isabelle me convidou para falar esta tarde, hesitei durante algumas horas antes de aceitar. Porque não sou linguista, nem filólogo ou crítico literário. Pior ainda, nunca estudei português. Aprendi sozinho, num pânico desesperado no início – no princípio dos anos 90 – porque precisava de dar as minhas aulas de jornalismo em português. E não sabia mais de 50 palavras. Porquê em português? Embora o diretor da Escola Superior de Jornalismo me tenha dito que podia lecionar em inglês, rapidamente me apercebi de que o nível de inglês dos alunos era muito baixo. A solução? Memorizei listas de substantivos e adjetivos e conjugações verbais, quase constantemente, durante pelo menos 2 anos, pois estava determinado a dar aulas excelentes. E também porque não queria viver como estrangeiro em Portugal, comunicando apenas com as pessoas que falavam inglês ou francês. Queria contribuir para as vidas dos meus alunos através das minhas aulas e, um pouco mais tarde, contribuir para o mundo literário em Portugal através dos meus romances. E mais tarde ainda, programar sessões em escolas e bibliotecas e livrarias. Considero isso o meu dever cívico, uma parte do contrato que fiz com Portugal quando o governo me concedeu a cidadania em 2002.
Dadas as particularidades do modo como aprendi português, decidi que a minha única opção esta tarde era falar-vos brevemente sobre a minha relação pessoal com a língua e a lusofonia.
Nas escolas de Nova Iorque que frequentei, nos anos 60 e 70, não aprendemos quase nada sobre Portugal. Passámos alguns dias a estudar as viagens de Vasco da Gama, Magalhães e outros descobridores. Ponto final. Então, se alguém me tivesse dito nessa altura que um dia eu iria viver para Portugal e que passados mais de 30 anos aqui teria uma dúzia de romances publicados em português, eu teria dito que era louco – e que a sua bola de cristal precisava de ser consertada.
Mas na verdade aqui estou. O que mostra que a vida nem sempre pode ser prevista. E que muitas vezes podemos ir além dos nossos sonhos. Porque nunca pensei que seria capaz de viver e trabalhar fora da América. Uma confissão: A grande maioria dos americanos tem um problema geográfico, digamos assim – acha que o mundo começa no Maine e na Flórida e termina na Califórnia. Então, em criança, nunca imaginei que seria capaz de construir uma vida realizada fora das fronteiras dos EUA. Ou que seria capaz de pensar, falar e escrever numa segunda língua. Então, agora, sempre que digo uma frase em português, estou a ultrapassar os meus sonhos! E enquanto estou a falar convosco, neste exato momento, uma pequena parte de mim está a murmurar ao meu ouvido: “Isto é incrível. Estás a falar português e a entender tudo! E apesar do teu sotaque de Nova York, parece que o público também percebe o que estás a dizer!”
Adoro as complexidades da língua portuguesa – por exemplo, de tempos que ou não existem em inglês ou que foram quase eliminados, como o futuro, o presente e o passado do conjuntivo. Consegui em grande parte ultrapassar este obstáculo, mas ainda há momentos em que estou a falar numa escola ou no meu programa radiofónico e a meio de uma frase vejo o verbo a aproximar-se e não faço a mais pequena ideia se devo usar o presente do indicativo ou o presente do conjuntivo. Entro em pânico durante um instante e depois escolho o que me parece fazer mais sentido, esperando ter feito a escolha certa.
Fiz as pazes com essa minha dificuldade, em parte porque percebo agora – já com 66 anos – que todo o ser vivo, inclusive a língua portuguesa, tem os seus mistérios e segredos. Penso que isso faz parte do seu encanto e charme.
O que digo sempre aos meus amigos que têm vergonha de cometer erros numa segunda, terceira ou quarta língua é que todo e qualquer erro é um sinal da sua generosidade e coragem – um sinal de que está disposto a abrir uma porta para uma terra desconhecida e entrar e fazer o seu melhor para avançar até ao horizonte que, aliás, nunca alcançará.
Português não é apenas o idioma da minha vida quotidiana mas também já faz parte da minha carreira de escritor, pois escrevo os meus livros infantis nessa língua. Isso tem sido um novo desafio maravilhoso, porque contar histórias em português aprofunda a minha apreciação das suas nuances e possibilidades e confere-me um novo nível de fluência. Adoro as opções que me oferece para criar jogos de palavras e rimas e humor. Dá-me prazer utilizar os sons e ritmos do português para criar narrativas cativantes.
Uma das grandes vantagens de fazer parte do mundo lusófono seja a possibilidade de fazer uma viagem para qualquer um dos PALOP quando quiser – quando leio, por exemplo, um poema de um autor moçambicano:

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.
Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.
Nem nada!
Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.
Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.
Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.

E acho-me no Brasil sempre que oiço a música do idioma desse país:

É o pau, é a pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba no campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o matita-pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento vetando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira

A Lusofonia é também uma máquina do tempo. Por exemplo, sempre que quero, posso viajar até ao século dezasseis e visitar um amigo que só conheço pelos seus poemas.

Ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar
No mundo túmulos tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que só para mim
Anda o mundo concertado.

E a Lusofonia dá-nos ainda uma forma de atravessar o véu que separa os vivos dos mortos e visitar velhos amigos que já não estão connosco. Por exemplo, aqui está o meu poema favorito de um amigo que lançou o meu primeiro romance em Lisboa em 1996, no Chapitô.

Chagall
Como se escrevesse um poema pinto a mulher
que irrompe da plumagem azulínea do galo
por cima das pontes anoiteceu onde flutuam
o bode e os noivos lancei por terra barreiras
entre elementos e leis físicas
para que o meu país se tornasse mais real
mais próximo de mim quando no exílio pouso
os lábios nas cores de avelã ou das nozes e
fico com o sabor delas na boca

recordo assim a casa paterna em vitebsk os nevões
de são petersburgo aquela criança no mercado
apanhando moedas atiradas ao tapete e a cabra triste
em equilíbrio - bailando - em cima do gargalo da garrafa
os músicos de acordeão e violino sob o clarão da lua
estes noivos que toda a minha vida esvoaçaram felizes
de pintura em pintura pelos nocturnos céus do país.


Para terminar, uma parte importante da Lusofonia para mim é a possibilidade de me fazer viajar instantaneamente de volta a Portugal onde quer que esteja, no momento em que ouço a língua falada ou, ainda mais poderosamente, cantada. Depois, regresso a casa e encontro-me a tirar ervas daninhas no nosso jardim no Minho ou a abraçar um sobreiro no Alentejo ou a contemplar a neblina da fronteira espanhola do ponto mais alto de Castelo Rodrigo ou a descer uma rua de Monsaraz ou de Tavira ou de Caminha e sentir os aromas do azeite ou de bacalhau ou de pão a cozer. Ou a olhar para um mar bravo e perigoso…

Barco Negro

De manhã, que medo que me achasses feia
Acordei tremendo deitada na areia
Mas logo os teus olhos disseram que não
E o sol penetrou no meu coração
Mas logo os teus olhos disseram que não
E o sol penetrou no meu coração
Vi depois numa rocha uma cruz
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia que não voltas
São loucas, são loucas
Eu sei meu amor, que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor me diz
Que estás sempre comigo
No vento que lança areia nos vidros
Na água que canta no fogo mortiço
No calor do leito dos bancos vazios
Dentro do meu peito estás sempre comigo
No calor do leito dos bancos vazios
Dentro do meu peito estás sempre comigo
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor me diz
Que estás sempre comigo
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor me diz
Que estás sempre... Comigo.

Rabindranath Tagore (Nobel da Literatura)

2023-07-11 16:53:23

 

Minha mãe veio-me hoje à lembrança com o traço de vermelhão que marcava o risco da sua cabeleira, o sari que usava, com o seu largo debrum vermelho, e os seus olhos, tão belos, tão profundos, tão serenos. Eles alumiaram a viagem da minha vida como o primeiro alvor da aurora, e deram-me o viático de ouro para tão longa caminhada. O céu que entorna a luz é azul, e o rosto de minha mãe era moreno; mas tinha o esplendor de santidade, e a sua beleza teria castigado a vaidade das mais belas. Todos dizem que me pareço com a minha mãe. Na minha infância, eu ofendia-me; irritava-me contra o meu espelho; parecia-me que a injustiça de Deus cumulava o meu corpo adolescente, que as minhas feições trigueiras não as merecia, e que me tinham sido dadas por engano. Não me restava senão pedir ao meu Deus, como reparação, a graça de fazer de mim «o modelo do que uma mulher deve ser», segundo a expressão de um poeta épico. Quando fui pedida em casamento, um astrólogo que consultou a palma da minha mão disse: — Esta jovem traz os signos favoráveis: deve ser uma mulher perfeita. E as mulheres que o ouviram, exclamaram: — Seguramente, porque ela parece-se muito com a mãe! Fui casada na família de um rajá. Quando era criança tinha lido várias vezes a descrição do príncipe dos contos de fadas. Mas o rosto de meu marido não era dos que a imaginação coloca comodamente no país das maravilhas: era trigueiro, trigueiro como o meu. A inquietação que me causava a minha falta de beleza dissipou-se um pouco; e, ao mesmo tempo, um pouco de pesar alanceou o meu coração. Mas quando as aparências escapam ao exame dos nossos sentidos para entrar no santuário do nosso coração, então podemos esquecê-las. Eu sei, por experiência da minha infância, que o amor é como o aspecto exterior da beleza. Quando a minha mãe dispunha no prato de pedra branca os frutos diversos que as suas mãos carinhosas acabavam de descascar, e agitava docemente o seu leque para desviar as moscas, enquanto meu pai se sentava à mesa para a sua refeição, esse serviço tinha tanta beleza que ultrapassava a simples formalidade.

 

João de Melo

2023-03-14 10:00:18

O visor do meu aparelho de casa indica-me a proveniência da chamada telefónica: Estados Unidos da América. Isso significa família. A minha, sendo estrangeira, ainda arrasta atrás de si os seus cuidados com o meu quotidiano de Lisboa. Mas agora o caso é outro. Sempre que me ligam fora de épocas festivas ou dias de aniversário, vem-me logo o sobressalto: poder tratar-se de alguma emergência - uma notícia má sobre gente acidentada, uma doença grave ou mesmo a morte súbita de alguém. Os irmãos e os cunhados mais velhos começam a perder os dentes e a ouvir mal; e a queixar-se cada vez mais das suas novas e antigas maleitas, ditas em inglês ou num português distorcido pela sua pronúncia americana. Ao mínimo pretexto, e a meio da conversa, aludem aos seus problemas de saúde, às tristezas da velhice, ao fim dos bons tempos americanos e à sua própria morte:
– Que estará aí, não tarda, para me levar – dizem-no numa voz chorosa que me tange no ouvido como a corda sonora de um sopro na distância.
É cada vez mais raro que me telefonem sem ser por um motivo especial, quero eu dizer, por mera cortesia e como se me fizessem uma visita, sem que se lhes anuncie na voz um tom de mágoa ou de severidade contra a vida.
Atendo de imediato. Mas a voz que me responde do outro lado da linha é a de Hermes, o meu cunhado, marido da Arminda. E logo ele que não telefona nem manda recados por ninguém, e nunca me escreveu um simples postal de anos ou com votos de boas-festas! Ela sim, que o faz com regularidade, sem ser por rotina, nem só nos dias por ela assinalados a vermelho no calendário de parede - a saber como estou eu de saúde, cá tão longe, em Lisboa, sozinho e nesta idade. Nunca deixou de me desejar os bons natais e os felizes anos novos, nem de me felicitar pelo dia de aniversário. A começar pelo zelo para com todos e pela sua dedicação à família, a mana Arminda sempre esteve muito acima do marido em tudo.
Na última vez em que os visitei em New Bedford, deu-se entre mim e o Hermes um sério arrefecimento de conversas e modos de trato. Nada de palavras. Pouco mais do que monossílabos e acenos de cabeça a dizer que sim, não e talvez. Chegara ao meu conhecimento que ele andava a tratar mal a minha irmã. Atrevera-se até a bater-lhe uma vez e outra, e outra. Disse-mo quem a viu com um olho negro e escoriações nos ossos malares. E a parva que não foi mulher para engrossar a voz e partir-lhe a cabeça com um banco da cozinha; nem teve artes de o entregar à justiça americana e pô-lo com dono, que ele bem o merecia! Vergara-se desde a primeira hora à ideia e ao dogma de fé segundo qual o casamento religioso era o sacramento do matrimónio, tão sagrado e sacrossanto como uma escritura selada para a vida e para a morte.
Sem nunca mo ter dito claramente, Arminda dera-me por diversas vezes a entender que eu vivia em pecado permanente, antes e depois do meu divórcio da Guida – casados que fomos pelo registo civil, e não pela Igreja. Depois disso, não me atrevo a imaginar o que terá ela dito e pensado de mim, ao saber das incontáveis namoradas e amantes que tive durante anos e anos, após o divórcio, para me redimir de tão árida e arrastada monogamia e da prepotência conjugal da minha ex-mulher. Na cabeça da pobre Arminda, o pecado envenenara já o pensamento, o amor e a vida de metade da nossa família: tinha-nos na conta de uns “amigados”, uns “acasalados como pombos”, a dormirmos juntos e a vivermos, sem remorsos nem confissão, na mesma casa. E, ainda segundo ela, a não batizarmos nem crismarmos as nossas crianças. Pior, muito pior: sabermos que as nossas filhas e os namorados praticavam o sexo amoroso antes de casarem, quantas vezes na própria cama dos pais, e nós impassíveis, virando a cara a tudo, sem nada fazermos para contrariar tais abusos e faltas de respeito da gente nova. A culpas e a situações como essas não havia volta a dar, nem pela confissão ou pelo arrependimento. Tratava-se de um pecado absoluto e que ela designava por “mortal”; ou seja, desses que condenam as almas à excomunhão e a levarem como destino final a casa sempiterna do Diabo.
Quanto ao meu cunhado, afrontava-me saber que esse homem grosso e ventrudo, com grandes mãos de capador de cavalos, passasse os seus tempos livres à frente da televisão e a idolatrar o presidente Ronald Reagan, os novos satélites espaciais, a sua guerra das estrelas, o medo que ele, Reagan, com os seus olhos de falcão, impunha de longe e perto aos regimes comunistas, fossem eles soviéticos, chineses ou cubanos. Só a poder de muita paciência eu suportava ouvir-lhe a gabarolice do alcance das armas americanas sobre o mundo, e mesmo sobre o universo inteiro, terror dos povos e aviso constante para os eleitos desses países. Hermes aplaudia tudo o que eu mais abominava na América desse tempo e nessa cabecinha de vento do meu cunhado. Passaram anos, e nós cada vez mais frios e distantes um do outro. Ele no seu novo mundo americano, eu no meu, mais pobre, o único português da família a baralhar a realidade de cada um com a sua ideologia sobre este mundo e o outro.
O meu irmão Artur (Arthur desde que obteve a cidadania americana), fora de propósito de Providence a New Bedford, ver com os próprios olhos como paravam as coisas entre o casal. Deu-me notícias do Hermes. Fiquei a saber que se reformara, deixando para trás uma vida de vigilante de máquinas e turnos de segurança numa fábrica. De novo sentado que nem um paxá à frente da televisão, convertera-se num maldito bebedor de cerveja. Berrava de lá as suas ordens à pobre Arminda, e ela saía de entre fogões e panelas, à boa maneira portuguesa, e servia sua excelência de mais cerveja com tremoços ou peanuts torrados, às vezes um prato com pão, uma salsicha a fumegar ou um hambúrguer coberto por molho de tomate ou por mostarda. Mesmo a ferver na sua cólera de justiceiro familiar, Arthur limitou-se a seguir com os olhos, lá do canto onde se sentara, os passos dela: o rosto sempre triste de Arminda, o olhar resignado à criatura imperial com quem casara e tivera três filhos.
Por isso e o mais, não poderia ser grande a nossa afinidade de cunhados; e tão-pouco haveria de ser sincero o meu respeito por Hermes, sempre tão bajulador, assim como o dele pela minha pessoa. Mais uma razão para eu me alertar quanto ao motivo pelo qual tinha agora a sua voz portuguesa no ouvido, o tom americanizado, a música falsa de cada frase, num arrevesado de palavras inglesas que já não pertenciam a língua nenhuma.
Há nervosismo nas vozes, a minha e a dele. Mal o cumprimento, pergunto-lhe por Arminda, e se filhos, noras e netos estão de boa saúde, e porque não vinha ela, a mana, ao telefone falar comigo. Um breve silêncio na linha. Algo me diz, não sei se a intuição, se a experiência da vida, que devo recuar na minha agressividade contra ele. Acode-me então um presságio: não esteja ela outra vez doente, ou tenha até morrido de repente, sabe-se lá, e ser essa a má nova que Hermes vem dar-me de viva voz pelo telefone. (É de longe e com mais frequência que se nos apregoam as piores surpresas da vida). O meu cunhado diz-me que não, ninguém na casa deles nem dos filhos está doente, graças ao Senhor Santo Cristo dos Milagres. A tensão da voz dá lugar a uma cautela precavida, na sua entoação americana. De certeza que tem algo de urgente ou de muito embaraçoso a dizer-me. Só não encontrou ainda o fio da corrente, nem a fúria essencial, nem a linguagem mista de duas línguas, mas não bilingue, que se tornaram estrangeiras desde que passaram a fronteira do meu país para a de uma terra que viria a apoderar-se do destino de toda a minha família.
Somos práticos, somos lúcidos. A nossa atenção toma conta tanto do olhar como do ouvido e do fremir ansioso da pele. Ouço um suspiro de afrontamento na respiração dele, não mais do que um sopro do hálito no bocal do telefone. Presumo que tenha bebido uma grade de cervejas para ganhar a coragem de me ligar. Mas nem assim ele se decide. Tenho de ser eu a intimá-lo a falar, a perguntar-lhe se alguma coisa o perturba – um segredo, a hesitação nervosa de quem se sente pouco à vontade com quem o escuta do outro lado da linha, neste cabo do meu mundo. Por fim, gaguejando entre o inglês e o português, Hermes lá se atreve a grunhir a primeira frase:
– Óme, ei e tua irmã temos ûa cousa serius e not easy pra te dizer.
Pausa. Novo embaraço. O nó górdio atravessado na garganta. Muito mais perturbado do que eu, apesar de já ter entendido que era o visado das hesitações dele ao telefone.
– Tu não tinhas o d’reito de pôr a gente os dous, mais os nossos filhos e toda a família nesse teu book! Ainda por cima de uma maneira tão silly! Ficas a saber que ‘tamos ofandides por tua causa – e, isto dizendo, a voz parece libertar-se de um peso superior ao da sua coragem, um peso comparável ao de uma montanha que tivesse caído em cima da cabeça do meu cunhado.
Ouço de novo um sopro para o bocal do telefone, agora mais livre e mais amplo no seu suspiro de vitória. Claramente aliviado por ter logrado um primeiro avanço na conversa. Dou-lhe tempo a que volte a compenetrar-se, antes de continuar. Traz todo o discurso atravessado na garganta. Mas o ressentimento trava-lhe a língua, impede-o de me dizer tudo de seguida. Talvez precise de mais um gole de cerveja. Ou de uma garrafa inteira bebida de um só fôlego, para que se lhe aclare a voz e ele se atreva por fim a ajustar as suas contas comigo. Impressiona-me estar perante um homem tão forte, com mãos grossas e duras como gadanhos, capazes de me rasgarem de cima a baixo, e ao mesmo tempo tão cobarde no modo como se agacha à minha pessoa. Não deve ser no corpo que reside agora a sua força contra mim. São-lhe mais custosas as palavras perante a minha linguagem, que ele reconhece tão diferente quanto superior à dele em tudo o mais. Sente o incómodo, lida com o complexo de quem sabe ter um pé, ou os dois, fora do seu mundo americano e com eles invadir os domínios do meu conhecimento europeu.
Hermes é hoje um homem economicamente avantajado na vida, um emigrante mais do que remediado em comparação com as suas posses de outrora, ainda em Portugal. Lembro-me da sua grande casa americana de dois pisos, com um muro alto a contornar o relvado e o jardim da frente, o barbecue na parte de trás, assim como a lenha em meda e as ferramentas e máquinas de jardinar, mais a garagem dos carros numa espécie de pavilhão separado de tudo, lá ao fundo do jardim. Não obstante isso, ele sabe que nunca superou nem superará a sua condição de estrangeiro. A ideia que fará de mim deve ser a do sábio que mora no alto de um monte, ao qual subiu através de trabalho e anos de estudo. Ao passo que ele não vai além de um pobre homem com o dinheiro aferrolhado nos bancos americanos, um recalcado pela vida e pelos turnos de trabalho numa fábrica da América. Tenho de ser eu a insistir para que se abra comigo e me diga de uma vez o que traz em mente.
Preciso de entender o princípio, meio e fim da iniciativa dele em telefonar-me dos Estados Unidos, numa tarde de sábado cheia de sol em Lisboa. Confesso-me atónito e quase obtuso – e é óbvio que o meu cunhado não sabe o que significam tais palavras. A voz dele tropeça no embaraço, ao emaranhar-se no inglês e no português. Hesita entre um impulso de ira e a firmeza do tom a dar às frases que ainda tem a dizer-me. A custo, lá se apodera por fim do que supõe ser o seu melhor trunfo contra a minha pessoa:
– Óme, a gente e os outres teis irmãos e cunhades decidimos contratá um lawer e pôr um processo no court da Justiça contra ti. Queremos esse tê book proibido de ser traduzido em americano. Seria a vergonha da nossa cara aqui, nas terras da América!
Não foi pequeno o meu espanto, confesso. Primeiro, precisei eu próprio de acreditar no que acabara de ouvir. Uma estranheza, a desordem dos sentidos dentro e fora de mim. E o calor do desdém a subir-me do coração à cabeça. Com que então, a santa da minha família estrangeira a declarar-me guerra por um livro, que mais não é do que uma história vivida por milhares, talvez milhões de emigrantes, como todos nós o fôramos e o éramos ainda, e continuaríamos a sê-lo por anos e séculos sem fim; a família apostada em processar-me judicialmente lá tão longe na sua América, com base em suposições e ideias mais do que peregrinas, modos ingénuos e primários de ler e de entender uma coisa chamada “ficção”.
Estava então em curso a tradução para inglês desse meu livro, «Os Irmãos Estrangeiros», às mãos de um descendente de açorianos emigrados há décadas para os Estados Unidos. O que dele pudesse alguém ter dito quanto a um hipotético carácter biográfico e familiar – só poderia ser obra de mexericos fermentados pelos maus fígados de outros emigrantes. As paixões do ódio, as rivalidades com o vizinho da frente ou do lado de baixo, a inveja entre gente oriunda do mesmo burgo e do tempo que todos levaram consigo para o chamado Novo Mundo. Apanhando-se bem da vida lá no estrangeiro, depressa passam a odiar nos outros a sua própria condição de origem. Uma gente dada a remoer, a pôr em causa a história de outros seres humanos que são afinal o que eles foram no passado: uns pés-descalços na linha de fronteira entre dois países. Tal como eles fizeram no seu tempo, os novos emigrantes estão agora a sair das casas, terras e infâncias da sua infelicidade, para irem cruzar a tal linha de passagem da fronteira e perderem-se na estranheza de uma língua que não lhes pertencerá nunca. Isso os tornará distantes e diferentes para o resto da vida.
Para mim, aquilo foi um embate, um choque que fez com que me encostasse à janela para absorver a luz do dia. Como se nela procurasse refúgio. Eu parecia alguém que tinha deixado de saber quem era e o que ali fazia, de pé dentro da minha casa e com o telefone no ouvido. Há quem perca a sua fé em tudo de um instante para o outro e por um motivo qualquer, a começar pela literatura. Não sei se iria ser esse o meu caso. Sinto um sufoco, ao imaginar-me réu de uma causa alheia, espécie de calúnia lançada não pela boca do meu cunhado Hermes, mas por anónimos sem rosto nem nome, uma terceira pessoa do plural designada apenas por “eles”. Os outros, sempre os outros. O inferno deles, Sartre tinha toda a razão. Tive a impressão de que me começava a faltar o ar respirável. Afastei as cortinas, abri as janelas de par em par. Que maravilha, o sol e a aragem do dia!
Eis aí a minha tarde de sábado. Não obstante estarmos em pleno Outono, vai lá fora um esplendor de luz no dia. Observo os montes ao longe, vejo casas e casinhas batidas pelo sol. Lembro-me lindamente desses montes desde o tempo em que, estando ainda desabitados, formavam uma cordilheira verde, algo enevoada, a contornar em arco este troço dos confins de Lisboa. Vieram os pretos de todas as Áfricas, juntaram-se-lhes os brancos e os escuros estrangeiros – eslavos, brasileiros, indianos, romenos, ciganos sem pátria - e veio também toda uma gente do campo que decidira fugir dos novos desertos do interior do país em que se iam transformando as províncias portuguesas. Agora, toda essa gente tenta sobreviver à sombra da cidade. Começaram por montar tendas e barracas nos desvãos da serra, depois construíram sobre elas casas clandestinas que deram lugar a ruas, prédios e até condomínios de gente endinheirada. Ergueram também uma ermida lá no cimo dessa montanha, e com a frontal voltada para Jerusalém. É o que vejo daqui: casas, ruas orvalhadas encosta acima, até aos cumes elevados da serra. Quando nelas bate o sol de frente, a sua luz irradia tranquilidade sobre o dorso dessas lombas montanhosas. Atrevo-me a pensar: toda a gente que ali vive deve saber melhor do que eu como ser feliz numa tarde de sábado, instalada num lugar tão alto, de onde pode ver o pesar e a solidão de Lisboa, e também no interior da minha janela.
Tentei rebater as acusações e ameaças do meu cunhado Hermes. Fui insolente e superior, de modo a afastá-lo de mais conversas comigo. Por último, já a berrar, exigi-lhe que passasse o telefone à minha irmã. Era com ela, e não com o seu rude e estafado marido, que eu devia entender-me. Antes de começar a falar comigo, ouvi-a respirar, ofegante, reservada na sua hesitação. Mal a saudei, o que acentuou ainda mais o nervosismo dela. Pretendia saber de que lado estava a mana, se contra mim e pelo marido, se por mim e contra a má-fé das tais pessoas que lhe garantiram ter lido «Os Irmãos Estrangeiros» em português. Pus-me a rebuscar palavras sóbrias, leves como penas, para construir a minha defesa. Tal como os outros irmãos, a pobre mana não frequentara mais do que a escola primária e a quarta classe, que tivera de concluir já adulta, por abandono escolar, e só quando se propôs embarcar para a América. Nunca fora fluente em nada e coisa nenhuma, nem mesmo na língua materna. Agora termina as suas frases portuguesas com you know; se tenta explicar-me seja o que for, repete I mean vezes sem conta. E os seus telefonemas começam por hello e terminam com bye, bye, miss you, see you soon, brother – com pronúncia portuguesa.
Como explicar à Arminda a simples, elementar noção de tudo o que me diz respeito: isso de literatura o que é? e de que modo entender a diferença e a proximidade entre a verdade real e a ficção da realidade? Fazer-lhe entender por que motivo me chamam escritor em Portugal, e para que serve isso de ser escritor, o que faço eu aqui, de onde me vêm as ideias que ponho nos livros. Difícil fazer-lhe ver que as personagens não são, nem têm de ser quem ela pensa, e sim gente imaginária que nos faz lembrar a história de uma qualquer família, venha ela dos Açores, de Portugal continental ou de outros países - como a paupérrima Índia, o Japão, a Turquia, o Egipto. Pessoas iguais a nós, e também irmãos, cunhados, sobrinhos entre si. Como explicar-lhe que o título de «Os Irmãos Estrangeiros» contém em si os vários sentidos do termo “estrangeiro” – sinónimo de estranho, forasteiro, diferente, nascido e com berço noutra terra? Tal e qual eles e eu, frisei bem. E toda a gente que mora na vossa rua portuguesa de New Bedford, também.
Falo à minha irmã noutro modo de verdade: a diferença que passou a existir entre nós, membros da mesma família, desde que nos separámos e cada um se tornou emigrante à sua maneira – eu a viver há muitos anos em Lisboa e eles na grande América dos seus sonhos. Aludo ao desconhecimento mútuo e à estranheza que aos poucos se foi instalando entre nós à distância, irmãos da mesma infância, filhos dos mesmos pais, a ponto de eles se terem naturalizado americanos e ficar eu para trás, o único português de uma família saída de antigos povoadores de ilhas, oriundos de uma qualquer província portuguesa, ou dos nobres que frequentaram o paço real; ou, sabe-se lá, descendente dos degredados que o rei condenou ao exílio na nova terra descoberta, ao corso marítimo ou ao tráfico negreiro entre a África e o Brasil. Pobre mana, que não entende nada do que lhe digo. Tudo inútil, nada funciona entre nós.
Confessa-me isso mesmo, com uma tristeza sombria na voz, a mesma que sempre lhe conheci na nossa infância portuguesa. Por fim, a muito custo, diz-me que se limita a fazer suas as opiniões do marido: alguém fora lá a casa dizer-lhes que lera o livro e o tivera por ofensivo como a lama dos caminhos, a expor-nos e a fazer pouco de nós – pai, mãe, irmãos, cunhados, sobrinhos, sobrinhos-netos.
É uma irmã sincera e naturalmente bondosa, esta. Não sabe dizer-me em que termos se vê retratada nesse meu livro. Nem ela nem o marido alguma vez leram um livro após a escola primária. O que pretende garantir é que os nomes deles andam nas bocas do mundo, pela mão de quem leu o livro e nele viu o que só os falsos leitores julgam ver nos falsos livros dos falsos escritores. Eles, Hermes e Arminda, nem sabem o que é isso de novel e de fiction; pior ainda, o que significa a palavra literatura/literature – dita em português ou na língua inglesa. É aí que me perco outra vez, a tentar traduzir-lhe a minha ideia, o uso dessa coisa a que o mundo inteiro deu o nome de literatura em todas as suas línguas. Faço-o como se agisse em legítima defesa. Saio-me bem, julgo eu, da minha exposição acerca da equidistância de fundo entre histórica e romance. Fazendo uso dos termos mais simples, tento elucidá-la sobre os mecanismos disso a que chamo ficção e eles fiction. Depois, entra-me um desânimo, um equilíbrio impossível à beira do precipício. Não consigo usar de melhor clareza explicativa, nem transmitir com simplicidade e eficiência a ordem metafísica da ficção; de como me sirvo dela para ensaiar a verdade do mundo, o sacrifício, a experiência da vida humana. Exemplifico-lhe:
– Os nossos sonhos são ficção, os desejos são ficção, também o que designamos por sentido figurado, ou as imaginações do bem e do mal. A verdade pura só existe numa realidade igualmente pura. Os homens tiveram necessidade de inventar a fiction não para mentir uns aos outros, mas para captar as condições de vida que podem servir de lição às outras pessoas.
Sinto cada vez mais o falhanço de quanto digo ao telefone, ao ouvido da minha irmã. Não encontro explicação para nada, tão-pouco a minha defesa contra as acusações que me são feitas pelos mixordeiros e intriguistas da comunidade emigrante, junto da minha família estrangeira. Eles vivem na América, sim, mas numa aldeia só deles. E numa única rua, a rua dos portugueses. Levaram consigo as procissões, as missas ao domingo e aos feriados religiosos, assim como a tradição de mandar benzer as casas uma vez por ano, para delas expulsar os espíritos do Mal. Foram eles, aliás, que construíram a sua própria igreja. De modo que não existe uma diferença essencial entre essa aldeia americana e aquela onde foram batizados e crismados em Portugal.
Termino com uma jura: ninguém nesse meu livro é o que se deve designar por uma pessoa real. A gente que nele existe é outra, parecida com pessoas do mundo inteiro que vivem fora do seu país. Mas a frase deixa-a como se eu acabasse de a fuzilar: morta entre mim e o marido. Suo, cerro os dentes com força, vem-me uma vontade inesperada de chorar por eles e por mim. Desisto das minhas inúteis explicações. Nada nesta vida é universalmente aplicável ao género humano. Digo à mana que me sinto cansado, talvez doente, a caminho da loucura, não esta de agora: a outra que é definitiva, única e verdadeira, a loucura louca da minha solidão num mundo que é só meu, tão longe e tão distinto do deles.
A mana desliga, não sei se desiludida, possivelmente de relações cortadas comigo a mando do marido e dos restantes irmãos estrangeiros que vão processar-me por causa de um livro de ficção, saído do engenho e da imaginação da minha cabeça. Padeço de angústia e metafísica em toda a parte, já o escrevi algures. Resigno-me ao mundo de Lisboa que ergui contra as regras da família, e que eu próprio fui construindo, como toda a gente portuguesa, pedra a pedra, muro a muro, entre a proibição e aquilo a que nos obrigam na vida. Ouço o silêncio de uma família inteira que se cala e como que apaga sobre si a existência da minha pessoa. É certo que há muito me tornei estrangeiro a eles, e eles a mim. O conhecimento recíproco foi sendo cada vez mais imaginário do que derradeiro. Custa perder o pouco que se tem e o que afinal já não é nosso, e do qual nos servimos por um puro instinto de pertença.
Não existe dívida maior de um país para com os seus naturais do que a ignorância a que os condena durante uma vida inteira. A ausência do saber condiciona a pessoa, do primeiro ao último passo do seu caminho. Limita-a no conhecimento próprio e dos outros. Acometida por uma realidade que lhe é de todo alheia, cai à água e não sabe nadar. Vive esbracejando para se manter à tona, mas só o faz enquanto acredita estar viva. Não há mundo que possa reduzir-se a uma imagem. Deve criar-se uma ideia para essa imagem. Só os princípios da razão me separam do quotidiano dos meus irmãos estrangeiros. Nunca faltou amor nas cartas que lhes escrevi, nem nas deles para mim, pese embora a distância fria que há tantos anos nos separa entre mundos e continentes tão distintos – a Europa e a América.
Não me sinto com forças para ligar a cada um deles e explicar-lhes o meu jogo de ficção. Além de me moverem o tal processo, é natural que não aceitem falar comigo daqui em diante, e nem atendam o telefone ao verem um número português no visor. Relações cortadas – o que significa? O princípio da inexistência. Até ao dia em que o livro vá a julgamento, e eu com ele, é o silêncio a cair-nos em cima como uma chuva forte e contínua, das que que não molham nem produzem ruído. O reverso do jogo é a impossibilidade da compreensão deles acerca de mim e daquilo em que me tornei ao escrever livros que eles não leram. Porque não estudaram. Por muito que lhes garanta que a ficção não passa de um “fazer de conta” que nos aproxima de alguém e de todas as coisas, eles não a aceitarão. Ignoram as regras e a finalidade do jogo.
Serve para quê isso de literatura? As contingências e dores da vida ensinaram os meus irmãos estrangeiros a tomar à letra tudo o que esteja escrito. Desde as Sagradas Escrituras até aos livros que falam deles e de mim como de a nova espécie de órfãos que somos. Órfãos desde a morte dos nossos pais, tanto na vida dentro de casa como na grande, misteriosa roda do mundo. E não apenas deles: primeiro que tudo de nós mesmos, depois do que nunca nos deram: os sonhos em vão sonhados, os desejos que não se realizaram em tempo algum na vida de ninguém. Isso sim, a literatura.


Ana Cristina Silva

2023-01-18 10:41:35

João Morgado

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